Por que reprovar não funciona?
A reprovação ganhou novo fôlego no debate educacional brasileiro. Em meados de agosto o prefeito do município de São Paulo, Fernando Haddad, anunciou o programa "Mais Educação São Paulo". Se a proposta original for mantida, a partir de 2014, a reprovação poderá acontecer em cinco momentos diferentes do ensino fundamental, ao invés de dois, como ocorre há 21 anos na rede paulistana de ensino.
No último dia 8 de novembro foi a vez do governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, lançar medida semelhante. A partir de 2014, os alunos do sistema paulista de ensino poderão ser reprovados em três momentos dos nove anos do ensino fundamental, ao invés de dois, como ocorre hoje.
Reprovação não é benéfica ao aluno
Entre os estudos mais citados sobre o tema, os textos de Holmes & Matthews (1984), de Holmes (1989) e de Jimerson (2001) possuem grande relevância. Os três trabalhos, em conjunto, analisaram criteriosamente dezenas de estudos empreendidos entre 1925 e 1999, esmiuçando a trajetória escolar de milhares de estudantes. Em linhas gerais, a conclusão é de que a reprovação não é benéfica ao aluno. Jimerson, que trabalha em um escopo de análise mais contemporâneo, de 1990 a 1999, considera que "nem a [mera] transição, nem a retenção, facilita o sucesso escolar e a adaptação dos alunos à escola, sendo por isso, necessário, substituir tais práticas por estratégias alternativas de apoio".
As medidas parecem contar com apoio popular e, segundo os governantes, têm a adesão de boa parte dos professores. Contudo, distante do que defende o suposto senso comum, as pesquisas em educação mostram que reprovar não funciona.
A defesa da reprovação possui inúmeros significados, em geral alheios à questão da aprendizagem. O saudosismo, traço comum em quase todo adulto, é um dos mais importantes fatores do fenômeno. Não é raro presenciar ex-alunos que tiveram dificuldades de aprendizagem e histórico de reprovação fazendo defesa de sua escola autoritária, excludente e cruel. Em seu exame particular do passado concluem que sofreram, mas venceram, e se foi assim com eles, porque as crianças e os adolescentes de hoje não podem passar pelo mesmo? Nem chegam a considerar que uma escola boa e justa poderia ter lhes propiciado instrumentos melhores de preparação para a vida.
A disciplina, elemento central da vida, é filha do engajamento, não do castigo. Educar é estimular o aluno, construir sentido, estabelecer vínculos, desenvolver valores e exercitar os raciocínios lógico, analítico e crítico. Para tudo isso, regras, papéis e combinados precisam ser acordados e respeitados.
A questão é que a reprovação como medida pedagógica contraria a razão. O fracasso não estimula ninguém a aprender, muito menos a estigmatizacão. Insistir na repetição de um conteúdo por mais um ano escolar não é uma estratégia pedagógica eficaz. Além de sofrer o constrangimento de ficar novamente no mesmo ano de escolaridade, o aluno repetente acaba sendo obrigado a conviver com colegas mais novos, mobilizados por interesses distintos, o que é ruim tanto para ele como para os demais.
Em termos de políticas públicas, o apoio à reprovação resulta da rejeição social à política de progressão continuada, popularmente conhecida como aprovação automática. Ela parte do comprovado pressuposto de que todos têm capacidade de aprender, em qualquer fase da vida, mas de diferentes formas e em tempos distintos. Nenhuma sala de aula é homogênea.
Aluno estigmatizado
Para Vitor Paro (2000), "a sociedade brasileira parece supor que passar para a série seguinte sem saber é pior do que não saber e continuar na mesma série, com o agravante do aluno ser estigmatizado e ferido em autoestima."
No Brasil são raros os exemplos de boa aplicação da progressão continuada ou da chamada política de ciclos. Invariavelmente, ela exige esforços contínuos para a garantia da aprendizagem, como o estabelecimento de uma clara e inteligente política curricular, o apoio e acompanhamento cotidiano aos professores e estudantes, a fixação dos docentes em apenas uma unidade escolar – favorecendo o trabalho em equipe –, a adequação do número de alunos por turma e a implantação da educação em tempo integral.
Também é necessário que o trabalho de reforço no contra turno envolva o uso de metodologias inovadoras, capazes de engajar e mobilizar professores e estudantes, dando condições para uma abordagem mais individualizada, conforme as necessidades de cada aluno. Ademais, é preciso articular as políticas educacionais com as políticas de cultura, esporte, saúde e mobilidade urbana, especialmente em regiões com alta vulnerabilidade socioeconômica e civil.
É justo reconhecer que as medidas dos governos paulistano e paulista não se reduzem à reprovação, contudo dão foco excessivo a ela, além de não corrigirem impedimentos históricos aos ciclos de aprendizagem. E é verdade que boa parte da rejeição à política de "aprovação automática" deveu-se a certa maquiagem das estatísticas educacionais, exibindo uma falsa produtividade das escolas.
Em casa, invariavelmente, as famílias percebem que suas crianças e adolescentes não aprendem. E isso é tanto frustrante quanto revoltante. Contudo, a retomada da reprovação não será remédio eficaz para esse problema. Antes, é preciso oferecer meios claros e efetivos para garantir a exigibilidade da qualidade da educação por parte das famílias. Além de estimular a participação dos familiares na gestão escolar.
A questão, portanto, não é reprovar ou aprovar, o desafio é garantir que o aluno aprenda. E para isso, o caminho correto, porém trabalhoso, é instituir com seriedade e honestidade a política de ciclos.
Poucos reconhecem, mas mesmo diante do desmazelo em sua implementação, a política de ciclos deixou um importante legado no debate educacional brasileiro desde 1990: as dificuldades de aprendizado dos estudantes deixaram de ser unicamente um problema dos alunos e de suas famílias e passaram a ser uma responsabilidade compartilhada com os sistemas de ensino. Na contramão dessa conquista, retomar a reprovação como medida pedagógica pode ter o efeito inverso, afrouxando exatamente a responsabilização dos gestores públicos.
Daniel Cara
Coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, bacharel em ciências sociais e mestre em ciência política pela USP.