Topo

Diretor da UFRJ chama outras regiões do país de "atrasadas culturalmente"

Léo Rodrigues

Do Portal EBC

27/03/2013 17h58

Um e-mail enviado na última segunda (25) pelo diretor da Escola Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Ericksson Rocha e Almendra, gerou repercussão entre o corpo discente da instituição. A mensagem, que trazia um alerta sobre as punições cabíveis a organizadores de trotes, foi encaminhada a todos os estudantes de graduação matriculados nas variadas engenharias.

Trotes

  • Reprodução/Facebook

    Trote realizado por alunos da Faculdade de Direito da UFMG gera acusações de racismo

  • Divulgação/Frente Feminista

    Alunos da USP hostilizaram feministas durante trote em São Carlos. Alguns estudantes chegaram a ficar pelados

  • Mauro Vieira/Agência RBS

    Aluna pode ter visão comprometida depois de trote em escola no RS

O trecho do texto que gerou polêmica chama atenção para a existência de alunos que chegam à matrícula com cabelos raspados e que parte deles deseja levar trote, “uma mostra de quão atrasadas culturalmente são suas regiões”. O diretor também aponta o risco da retomada dos trotes com a chegada de novos calouros, "sobretudo alunos do interior do país onde tal prática ainda é generalizada".

A reação ao e-mail foi imediata, tanto no grupo interno de mensagens como nas redes sociais, o que ocasionou um segundo e-mail de Ericksson Almendra, no qual reafirma a opinião de que "trote é sinônimo de atraso cultural" e que o uso do termo fora "intencional".

Ele mencionou outros exemplos de atrasos culturais, como as touradas da Espanha e os escorpiões na China, qualificados como "uma aberração gastronômica". Mas ressaltou: "não que a intenção tenha sido ofender, longe de mim, peço desculpas se isso ocorreu, mas tive sim a intenção de provocar. Espero sinceramente que mais, muito mais, alunos tenham se sentido incomodados ... e ... reflitam".

Ofendidos

Dois dias após a mensagem, alguns estudantes continuam trocando e-mails de indignação na lista fechada da Escola Politécnica. No grupo do Facebook, já são quase 250 manifestações. Um estudante do 7º período respondeu prontamente ao diretor:

"Sou contra esse tipo de recepção dos calouros. Mas não posso deixar de dizer que nesse e-mail o senhor fez alguns comentários que considero ofensivos. Tenho amigos fora do Rio, e nos estados deles às vezes a própria família ou amigos próximos raspa a cabeça dos aprovados. Conheço rapazes que tiveram a cabeça raspada, e meninas que rasparam a sobrancelha e saíam com curativos coloridos sobre os olhos, com orgulho de terem passado para uma universidade. Não se sentiam ofendidos. E acima de tudo, não são pessoas culturalmente atrasadas".

Confira os e-mails na íntegra:

Prezados
Esta mensagem se dirige a todos os alunos da Escola Politécnica, calouros e veteranos.

Estamos recebendo uma nova leva de calouros, 615 neste primeiro período. Assim, nunca é demais lembrar que na Escola Politécnica
- é proibido dar trote
- é proibido levar trote
- é proibido assistir trote

Há um código disciplinar e ele é aplicado. Há cinco anos foram 25 os punidos e mais da metade eram calouros. Submeter qualquer pessoa a constrangimentos é crime. Tratar isso, não como o crime que é, mas como um problema disciplinar é uma opção da Escola, é uma atitude educativa, não repressiva. Mas, punido, um aluno perde acesso a quaisquer benefícios concedidos pela Universidade, bolsas, iniciação, intercâmbio, viagens, etc.

Vejo entretanto, com muita satisfação, que não há punições já há três anos. Mais ainda, vejo surgirem formas muito mais positivas de receber os novos colegas. Há gincanas, há churrascos, há palestras, há o mangue. Veteranos de um de nossos cursos criaram até mesmo uma forma de "mentoring" com os calouros: cada veterano voluntário torna-se conselheiro acadêmico de um calouro. Em suma, estamos fazendo jus ao conceito de grande escola que temos.

Mas os trotes não acabaram e há risco de retomarem alguma força com a chegada de grande quantidade de calouros de outras regiões, sobretudo alunos do interior do país onde tal prática ainda é generalizada. Acabamos de ver alunos de um determinado Estado chegarem à matrícula com os cabelos raspados. Em geral, uma parte de tais alunos querem, desejam, "levar trote", uma mostra de quão atrasadas culturalmente são suas regiões. Juntar alunos que querem levar trote com outros que querem dar, esse é o risco.

Ficam apenas dois alertas. Primeiro: em atividades do tipo churrasco, mangue, chopadas, etc. há a possibilidade de surgirem brincadeiras, competições, joguinhos, ...  São ótimas, mas se forem impostas e/ou se se destinarem apenas aos calouros, ultrapassa-se uma fronteira perigosa. Qual seria então a diferença para um trote? Segundo: impor aos calouros a tarefa de esmolar em esquinas longe do Fundão é algo muito, muito arriscado. Pode além de crime de constrangimento, pode ser considerado uma extorsão, além de submeter os colegas a risco de atropelamento. Há 6 anos os 25 punidos o foram pois um transeunte os fotografou no Largo da Carioca com um celular e as fotos nos foram enviadas. Houve quem propusesse encaminhar os envolvidos para a Justiça comum.

Já houve o caso de um veterano punido porque um calouro sofreu um pequeno acidente, não relacionado com as brincadeiras, mas como se tratava de um trote, estava sob a responsabilidade de quem o promovia, que não cuidou de sua segurança. E, neste momento, há um processo policial em andamento apurando as responsabilidades por uma briga, e a consequente lesão corporal, numa dessas chopadas pois a segurança dos frequentadores é responsabilidade dos organizadores.

Atenciosamente
Prof. Ericksson Rocha e Almendra

Segundo e-mail

Prezado alunos

Recebi já algumas mensagens sobre meu texto e a menção que fiz aos atraso cultural. Recebi as mensagens como uma crítica construtiva.

Sou piauiense, tenho irmãos e sobrinhos universitários lá e em Pernambuco, regiões em que os trotes são ainda comuns. Não generalizo a observação, mas acho sim que trote é sinônimo de atraso cultural. Não é rito de passagem, não é coisa de estudante, não é natural ...

Pensei bastante quando inclui essa observação no meu texto. Não foi ideia minha, mas de um calouro. Sim, de um calouro que ao ser perguntado por mim sobre a cabeça raspada respondeu "sabe como é... sou de um Estado atrasado".

Há várias formas de lutar pelo que acreditamos ou contra o que achamos errados. Uma delas é dizer de forma franca e aberta
- touradas são um atraso cultural da Espanha
- lançamento de anões é uma barbaridade Australiana
- escorpiões são uma aberração gastronômica da China
- farra do boi é um vexame catarinense
- trotes são um atraso cultural de muitos Estados do Brasil

Acho a Espanha um país maravilhoso, Austrália idem, acho a cultura chinesa fantástica, adoro o maracatu e o frevo de Pernambuco. Florianópolis é uma lindeza. O Piauí tem um dos melhores cursos de medicina do país, mas pratica trotes medievais.

Serem selecionados para a UFRJ é sinal de competência acadêmica, atraso cultural é outra coisa. O rapaz que me deu a ideia, ao mesmo tempo estava feliz por ter levado o trote dos amigos. De minha parte não será admirado por isso, mas por suas notas. Disse isso a ele.

Finalmente, quando escrevi aquilo, imaginei e esperei exatamente reações como estas. Foi intencional. Não que a intenção tenha sido ofender, longe de mim, peço desculpas se isso ocorreu,  mas tive sim a intenção de provocar. Espero sinceramente que mais, muito mais, alunos tenham se sentido incomodados ... e ... reflitam.

Não creio que se conseguirá extinguir essa prática fugindo da discussão, considerando-a natural, etc. etc.

At.
Prof. Ericksson Rocha e Almendra