Colocar professor sob suspeita torna carreira menos atrativa, diz educadora
Ao estimular que o aluno denuncie seu professor por suposta doutrinação ideológica em sala de aula, o projeto Escola sem Partido, que hoje tramita no Congresso Nacional, diminui a atratividade da carreira de professor no Brasil.
É a avaliação de Cláudia Costin, educadora, professora e ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro entre 2009 e 2014, nas gestões do prefeito Eduardo Paes, então no MDB.
O projeto Escola sem Partido coloca todo professor sob suspeita. E isso não torna a profissão de professor atrativa."
Costin diz ao UOL que a melhor forma de enfrentar uma suposta doutrinação não é o aluno filmar o professor, como sugeriu uma deputada recém-eleita, mas "o coletivo de professores de cada escola discutir junto como se ensina um aluno a pensar".
É difícil doutrinar um aluno que aprendeu a refletir e a exercer o pensamento crítico, acrescenta a ex-diretora global de educação do Banco Mundial (2014-2016) e hoje diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Cláudia Costin cita que o grande problema da educação de base brasileira é que os alunos aprendem mal ou não aprendem, e os professores não recebem formação e preparação adequada para o "chão de escola".
Problemas que, na opinião dela, nem de longe o Escola sem Partido ajuda a enfrentar. Confira os principais trechos da entrevista ao UOL.
UOL - O projeto Escola sem Partido [PL 7180/2014], caso seja aprovado pelo Congresso Nacional, ataca o problema mais importante da educação no Brasil, hoje? Ataca o problema real?
Cláudia Costin - Com certeza, não, porque o problema real é de outra natureza. Como mostra o World Development Report [Relatório de Desenvolvimento Mundial 2018, do Banco Mundial], o que está acontecendo é que nossas crianças e adolescentes não estão aprendendo. Ou não estão aprendendo como deveriam. [Entre outros dados, o relatório apontou que alunos brasileiros de 15 anos levariam 260 anos para atingir o mesmo nível de leitura de estudantes da mesma idade de países ricos, mantido o atual ritmo de melhoria.]
Para resolver esse problema da aprendizagem e garantir que todo jovem de 15 a 17 anos faça e complete o ensino médio, e aí temos um problema até mesmo de acesso e não só de aprendizagem, o Escola sem Partido não tem impacto nenhum.
E qual seria o impacto?
O projeto Escola sem Partido coloca todo professor sob suspeita. E isso não torna a profissão de professor atrativa. É muito importante que a profissão seja atrativa e que os cursos de formação de professor preparem de fato para a profissão.
Hoje, os cursos de formação de professor, nas universidades públicas ou nas instituições privadas, são excessivamente teóricos e muito distantes da realidade do chão de escola. Isso precisa mudar.
Por exemplo, ninguém forma um médico da forma que se forma um professor. Desde o primeiro ano [da faculdade], o médico já está presente em hospital universitário, tem contato com estudo de casos, mas, na formação de professor, é muito distante o que se trabalha [na universidade] em relação à prática em sala. Vamos encontrar professores que vão ter o primeiro contato com a sala de aula só durante o estágio ou só depois que passarem num concurso.
O central, para melhorar a aprendizagem dos alunos, é ter um professor com maior pool de talentos, formá-lo bem melhor. Investir na formação continuada dele. Além de ter um currículo bom, o que o Brasil está fazendo, com a Base Nacional Comum Curricular [BNCC] e, à medida que a base do ensino médio ficar pronta, também vai ser traduzida em currículos estaduais e municipais. São essas as medidas e são medidas sistêmicas.
Não há bala de prata para resolver o problema de educação, e o Escola sem Partido não resolve o problema."
No caso de esse projeto passar, terá implicação imediata na prática do professor em sala de aula? Modificará o ambiente de aprendizagem?
Primeiro, é preciso dizer que doutrinação em escola existe desde que há escola, doutrinação de diferentes vieses, de direita ou de esquerda.
Para mim, doutrinação é o professor ensinar a sua visão de mundo como verdade científica ou como a única verdade possível e não aceitar posições diferentes desde que fundamentadas. Isso acontece ao longo da história. Minha mãe me contava, ela estudou na Hungria pré-Segunda Guerra, que a professora de história dizia como verdade científica que os generais romenos, do país vizinho, usavam calcinhas de mulher.
Mas o melhor antídoto para isso não é fazer os alunos filmarem os professores, como uma deputada de Santa Catarina sugeriu [a deputada estadual eleita Ana Caroline Campagnolo (PSL) abriu canal informal para receber "denúncias" contra professores], ou criar um clima em que parlamentares se sintam confortáveis para achar que podem vigiar salas de aula.
O antídoto para a doutrinação é o coletivo de professores de cada escola discutir junto como se ensina um aluno a pensar. Ensinar a pensar científica e matematicamente é o melhor antídoto contra doutrinações."
A senhora consegue identificar alguma razão que nos levou ao ponto de [parlamentares e sociedade civil] elaborarem um projeto com as características do Escola sem Partido, com chance de ser aprovado?
Sim. A minha sensação, olhando para o espírito de nossa época, é que vivemos um período em que tudo que foi associado ao governo anterior ao impeachment [governos do PT, de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff] aparece sob suspeita. Há uma percepção da população que votou agora [contra o PT] de que houve eventuais excessos na forma como a história ou a geografia foi ensinada.
Eu, pessoalmente, não acredito que houve excessos, mas há uma percepção de que há um monolitismo na abordagem dada em história e geografia nas escolas. E de novo: se há de fato algum monolitismo, isso se combate com pensamento crítico.
Hoje tem gente que coloca sob suspeita o pensamento crítico, porque Paulo Freire [1921-1997, educador brasileiro] se referia a ele. Mas pensamento crítico não quer dizer decorar a visão de mundo do seu professor, é tornar-se um pensador autônomo.
A escola precisa formar as crianças para serem pensadoras autônomas, porque, senão, a gente não forma cidadãos conscientes, e sim seguidores de líderes geniais das massas."
A senhora acredita mesmo que o Escola sem Partido possa ser aprovado [está em discussão em comissão especial da Câmara dos Deputados]?
Espero que não, e espero muito. Já vivemos realidades, não só no Brasil, de professores sob suspeita, de fiscalização, de denúncias. É muito fácil, por exemplo, que um aluno filme um professor e se responsabilize esse professor por algo que, fora de contexto, não significa nada. Então espero que não aconteça nada nessa direção. Seria empobrecedor para a educação. É a antieducação.
A senhora conhece lugares considerados modelos para a educação, como parece ser o caso de Singapura, onde fez palestra recentemente. Nesses lugares que a gente aponta como de educação bem desenvolvida, ou pelo menos com modelos inspiradores, Finlândia, Coreia do Sul e vou colocar Cuba aqui também, existe alguma orientação nos termos do Escola sem Partido?
Não conheço em detalhes a situação de Cuba e mesmo a de Singapura, onde o governo é um pouco mais autoritário. Mas posso dizer que, na Europa, no modelo finlandês, ou mesmo no da Coreia do Sul, para pegar o Leste Asiático, não existe nada nessa direção.
O que existe é jornada escolar um pouco mais ampla que a da gente. Na Finlândia, os alunos têm seis, sete horas de aulas por dia, porque inclui o almoço. E a gente só tem quatro horas e 13 disciplinas, o que torna o processo de ensinar extremamente fragmentado. Quer dizer, você recebe um verniz de cada disciplina.
Lá, como tem menos disciplinas e mais horas de aula, o processo de ensino é mais voltado a formar gente que pensa. Pensar histórica, matemática, científica ou filosoficamente é algo trabalhado nesses sistemas. Faz diferença.
Também os professores trabalham muito mais colaborativamente e existe a prática de colegas assistirem a aulas de outro. Então, o controle para melhorar a qualidade da aula, inclusive evitando doutrinação, é feito de maneira muito mais colaborativa, e não policialesca.
A senhora costuma dizer: "O foco tem que ser no aprendizado". Isso também é certo antídoto para a suposta doutrinação, não é?
Se colocar o foco no aprendizado do aluno, e numa visão de aprendizado que não é decoreba. Não é simplesmente decorar os afluentes da margem direita e esquerda do Amazonas, para contar algo da minha escolarização, mas aprender a entender quais são os desafios da população ribeirinha, por exemplo, para pegar a questão do Amazonas, você criou um antídoto natural contra doutrinações.
A doutrinação sempre existirá, mas sempre existirá quando a gente não ensina a pensar. Quando a gente tem medo do pensamento independente."
A senhora já falou que educação é base, motor do desenvolvimento econômico de um país. Vinculou educação e economia. E tem gente que é crítica a essa visão, porque tiraria a força da educação como desenvolvimento social e ensino de autonomia.
Primeiro, é importante dizer que a educação, em boa parte dos países mais desenvolvidos do mundo, foi o fator decisivo para o desenvolvimento. Você olha para os países do Leste Asiático, por exemplo, e o desenvolvimento que tiveram, que é um crescimento sustentável no sentido de ser de longo prazo e eles continuam crescendo, está associado não ao número de anos de escolaridade, mas à qualidade da educação.
No Brasil, no ano de 2000, tínhamos 4,9 anos de escolaridade média e hoje temos 10,4. Ou seja, a gente avançou nisso. Claro que o fato de que as crianças não ficavam muito tempo na escola prejudicou muito, mas não basta estarem mais anos na escola. A qualidade é essencial para promover o desenvolvimento sustentável no longo prazo. E também para ser inclusivo.
Os países que têm boa educação também são menos desiguais. Especialmente se essa educação priorizar a excelência com equidade. Não é uma educação de qualidade para as elites e os mais brilhantes entre os pobres, é educação de qualidade para todos.
Sim, falta boa gestão em educação e algumas prioridades estão invertidas, como a de se gastar mais com ensino superior, mas não basta melhorar a gestão e reverter as prioridades."
Falta verba também?
Falta, porque o que precisa ser feito hoje na educação, para tornar a profissão de professor mais atrativa, é melhorar o salário. Em várias partes do país, os salários estão inaceitavelmente baixos.
E os contratos são precários: você contrata o professor para dar dez ou 16 horas por semana, e aí o professor tem de dar aula em três ou quatro sistemas diferentes. Dá aula para a rede estadual, municipal, para a rede privada e passa o seu tempo se locomovendo para ir a cada lugar. Com isso, a profissão fica muito menos atrativa.
A gente deveria contratar professores por 40 horas, ou em regime de dedicação exclusiva, como qualquer outro profissional de nível superior. Aí incluído tempo para ele estudar, trabalhar colaborativamente com seus pares e tudo o mais. Há, sim, certa precarização no contrato dos professores que precisa ser corrigida. Quando fui secretária municipal da Educação do Rio [2009-2014], implantamos um plano novo de carreira e salários dos professores cariocas, e a aprendizagem dos alunos, mostrada por melhores índices no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], melhorou.
O que a senhora espera do governo de Jair Bolsonaro?
Com relação ao Escola sem Partido, que ele defende, já me manifestei contrária e criticamente. Bom, uma coisa são as bravatas do período eleitoral, outra é o que de fato vai fazer, o que ficou no seu programa de governo.
Li o programa dele e se destaca a importância do ensino técnico e profissional, que acho positivo, porque de fato a gente tem um índice baixíssimo [de matrículas nessa modalidade]. Só 13% dos alunos do nível médio vão para ensino técnico e profissional. Na Europa, você tem algo entre 40% e 60% dos alunos indo para o ensino técnico.
O que não gostei foi a referência desnecessária ao Paulo Freire, que é um dos grandes pensadores educacionais não só do Brasil, é respeitado internacionalmente. A sugestão que está no programa de Bolsonaro é tirar o Paulo Freire da base curricular, mas Paulo Freire não está na base. Não tem nenhuma menção a ele. O que está presente na base é pensamento crítico, mas quem falou de pensamento crítico foi o Dewey [John Dewey, 1859-1952, filósofo e pedagogo norte-americano], são vários pensadores, não só o Paulo Freire.
Imagino que não querem tirar o pensamento crítico da base, até porque vai ser decisivo para a quarta revolução industrial, processo que estamos vivendo, a inteligência artificial substituindo trabalho humano. Então vai ter de mudar a maneira de formar jovens para as características desse novo tempo. E pensamento crítico é uma das coisas nas quais as máquinas não vão poder nos substituir.
Gostaria que a senhora falasse também sobre a educação como instrumento contra a violência e pela paz. Hoje, morrem jovens, sobretudo de periferia, na passagem para a adolescência, que tinham abandonado a escola.
Um dos mecanismos mais importantes para enfrentar desigualdade é a educação. E quando há grandes desigualdades, acaba-se tendo como resposta violência e criminalidade. Porque o jovem tende a não acreditar mais na educação como mecanismo de emancipação social. O jovem acha que a educação não vai levá-lo a lugar nenhum e abandona a escola. Nós temos uma taxa de abandono escolar no nível médio altíssima, que em parte vem de o jovem sentir que não está aprendendo [segundo dados do Ministério da Educação, com base no Censo Escolar 2015, a taxa de evasão no primeiro e segundo anos do ensino médio no Brasil supera 12%].
A educação traz em si uma promessa importante: de que vai gerar igualdade de oportunidades. Todo o conceito de meritocracia está associado a ter oportunidades iguais. Quando a gente não realiza essa promessa de igualdade, a meritocracia vira sem sentido. Como vou cobrar o mesmo desempenho de pessoas que tiveram oportunidades educacionais tão diferentes? Isso está na raiz da violência e da criminalidade.
Tem uma pesquisadora [da Universidade] de Stanford [EUA], que é a Linda Darling-Hammond, que diz que, quando a gente não oferece educação de qualidade para os mais vulneráveis, inclusive com mecanismos de apoio para que possam ter sucesso escolar, está construindo um duto que liga diretamente dos bancos escolares para os presídios. Isso, infelizmente, é verdade aqui no Brasil. Às vezes, nem sequer dá tempo de o jovem ir para o presídio, porque morre antes. Então, é muito injusto não se construir educação de qualidade.
A senhora acha que o Brasil é um país racista?
[Costin suspira] O ser humano é racista. E o processo civilizatório passa por enfrentar o racista que existe dentro de cada um de nós, seja por meio da educação, seja pela construção de normas de conduta gerais. A gente se civiliza quando deixa de ser racista.
Quando falo de racismo aqui, estou incluindo o tribalismo nisso. Quer dizer, o ser humano, no estado primitivo, tinha uma profunda desconfiança do outro, do diferente. O processo civilizatório é quando a gente considera que isso é equivocado e precisa agir de outra maneira. Daí a importância da educação.
Nesse sentido, o Brasil, como outros países, é racista, porque somos humanos e falhos, temos isso incluído em nossa natureza, e ainda não temos feito o suficiente para enfrentar o problema do racismo. Especialmente porque somos o último país do continente americano que abandonou a escravatura [1888, com a Lei Áurea]. Temos de fato um problema.
O ensino da tolerância, do ser, que está colocado por Jacques Delors, que a senhora costuma citar, poderia deixar um recado final em termos de tolerância, de respeito à diversidade, ao diálogo?
Quando se começou a construir o projeto europeu [de união], Jacques Delors [político, presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995] dizia que era importante educar as crianças europeias para quatro pilares -- e isso vale para o mundo inteiro, pois a Unesco depois se apropriou dessa fala dele. Vou destacar dois, que têm a ver com a pergunta. É aprender a ser, no sentido de estar confortável com a própria identidade, e ao mesmo tempo aprender a viver juntos.
Delors diz que a França, que é o país de origem dele, definiu originalmente a sua identidade em oposição aos alemães. E que o desafio que os europeus teriam para construir o projeto comum europeu era educar as crianças para terem uma identidade bem resolvida, conhecendo e prezando a cultura do seu país e, ao mesmo tempo, vivendo junto com outros que têm outras identidades, e isso ser uma coisa bem-vinda. Não só tolerada, mas bem-vinda. Aprender a viver na diversidade.
E a escola tem um papel importantíssimo em relação a isso. Entre outras coisas, ensinar a construir uma cultura de paz e de comunicação não violenta entre jovens, para que um possa aprender com a identidade do outro sem necessariamente abandonar a sua.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.