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O dilema de Javert

Guilherme Perez Cabral

04/07/2016 06h00

Educadores que se dizem neutros e imparciais propõem ensinar as crianças o que é o certo, protegendo-os de (outras) ideologias e doutrinações. Afinal, o que é certo é certo. Pronto e acabado. Forjam uma verdade estrangulada no laço da ignorância, silenciando outros pontos de vista, igualmente verdadeiros.

Por não suportar a contradição, a dúvida, transformam em teoria pedagógica uma necessidade neurótica de certezas, por mais estúpidas que sejam, e de segurança, por mais frágil que se revele.

Educar, assim, é ajustar, conformar a criança a um mundo empobrecido, reduzido a um único ponto de vista. É transmitir o catálogo de regras e de verdades preditas. É formar ignorantes sabidos de tudo. Por desconhecerem a complexidade da vida humana e suas infinitas possibilidades, podem seguir em frente, confiantes, pisando em solo firme imaginário, no caminho certo (o único que conheceram).

Essa proposta não é nova, absolutamente. E preocupa bastante. É arriscada. Pois não considera que, mesmo o ser humano mais adaptado e domesticado, pode, de repente, numa encruzilhada da vida, parar e fazer o que se menos se poderia imaginar. Inacreditável... Ele pode sentir o desconforto da dúvida. Ele pode questionar o mundo simplificado imaginário que nele incutiram. Sim, o ser humano pode, contra todos os prognósticos, pensar e resistir.

Em “Os Miseráveis”, Victor Hugo conta a história de redenção de Jean Valjean, miserável que, por roubar um pão, passou 19 anos preso. Transformou-se, pelo sofrimento, num “homem perigoso”, cheio de ódio. E recobrou a humanidade, a partir de um ato de bondade de um religioso a quem havia roubado.

Na história, tem também Javert, um policial incorruptível, cão de guarda da lei, a sua moral. Durante a vida, cumpriu com seus deveres, com rigor. Fez o certo, sem nunca duvidar. Nada havia nele que não estivesse ordenado, encadeado, preciso, exato, previsto. Por isso, por muito tempo, perseguiu Jean Valjean.

Javert, cheio de certezas edificadas sobre solo da ignorância, é o limite de humanidade em que podemos chegar, a partir de uma educação que acredita tanto na sua verdade, ao ponto de proibir qualquer outra.

Pois bem. Um dia, Javert viveu seu grande dilema, o primeiro e único. Jean Valjean o salvou da morte. O homem feito para sofrer, foragido da polícia, era, agora, seu benfeitor. Então, quando tem o miserável em suas mãos, Javert vê, diante de si, “dois caminhos igualmente retos; isso o assustava, ele que jamais conhecera na vida senão um caminho certo”. Cumprir a lei ou seguir sua própria consciência, que acabara de conhecer, e deixar Jean Valjean livre?

Foi constrangido a pensar. E “sua suprema angústia era o desaparecimento da certeza”. Não estava preparado para isso. Até ali, tudo fora para ele claro e simples. Agora, a sabedoria oficial, a infalibilidade da lei, o princípio da autoridade, todos os dogmas sobre os quais repousavam sua segurança, sua justiça e sua incorruptibilidade não passavam de entulho e caos.

Javert deixou Jean Valjean ir embora. Não suportou, porém, o desespero de viver num mundo em que não há certo e errado de uma vez por todas. “Pensar era para ele uma coisa estranha e singularmente dolorosa”. Javert se matou, lançando-se no Rio Sena.

Educadores e pupilos que creem possuir só certezas, cuidado! Muitos viveram e morreram felizes, sem nunca duvidar. Adaptados, sem resistir. Sem experimentar a beleza da pluralidade humana. Prepararem-se, contudo, para o encontro com o incerto, com o duvidoso, e para o “dangerosíssimo” exercício do livre pensar.

Todos estamos sujeitos a um dilema de Javert.