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O "A" feminino que a Ministra Carmen Lúcia desdenhou

Guilherme Perez Cabral

22/08/2016 06h00

A discussão parecia já ter dado o que tinha que dar: Presidente ou Presidenta? Mas voltou depois da recente fala da Ministra Carmen Lúcia, que assumirá a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF). Infelizmente, mais uma vez, corremos o risco de deixar para trás um ponto importantíssimo do debate, até aqui negligenciado. Conversávamos sobre isso com a Professora Renata Gaspar, na semana passada. Conversa esclarecedora.

Dilma preferiu Presidenta. Confesso, não me acostumei ainda, mas não posso deixar de concordar com os argumentos a seu favor. O “A” no final tem um sentido profundo. Simboliza trazer à linguagem do dia a dia, o resultado de uma luta por reconhecimento, de todas as mulheres. Estamos falando da primeira mulher a assumir a Presidência de um país misógino, dominado por homens, onde a mulher ainda luta para não ser estuprada, uma a cada 11 minutos.

A turma se revoltou. Bradaram contra esse atentado à língua portuguesa, tão conhecida e bem falada por todo o Brasil (registro... há ironia). O tempo passou, Dilma saiu e entrou o homem das mesóclises que até proibir proibiu o “A” no final.

Vem, agora, Carmen Lúcia, uma das duas mulheres entre nove homens no STF, e põe lenha na fogueira. Como “amante da língua portuguesa”, prefere, tal como os homens que, salvo raras exceções, sempre ocupam as presidências no Brasil, ser chamada de PresidentE.

Novo bafafá e esclarecimentos por quem entende do assunto. O Professor Pasquale, em quem todo mundo confia, quando o assunto é o português correto, explicou, explicadinho, que pode, sim, presidentA. Cada um usa o termo que preferir, com “E” ou “A” no final. Se Carmen Lúcia prefere com “E”, use-o então.

Debate resolvido, deixando esquecido, talvez, o mais importante: o descabido, pontual e raro apego às regras da linguagem que quase ninguém conhece. Um apego que serviu de fundamento para deixar tudo como está.

Pois pouco importa se algum livro sagrado das palavras certas permite ou não o “A” no final, se os dicionários preveem ou não “Presidenta”. A questão transcende isso. É de se esperar, aliás, que, numa sociedade misógina, a linguagem predominante, coloquial ou culta, seja, também, misógina. Por isso, precisa mudar.

O que falamos, como falamos e o que preferimos falar muda com as mudanças da sociedade e, mudando, muda a sociedade também. Nada fica parado no tempo, salvo os homens que tomam conta do Brasil desde sempre.

Não discutíamos, no passado, essa história de PresidentA porque não tinha mulher ocupando presidências. Isso é algo novo. Afirmar e afirmar-se presidentA reforça uma nova realidade.

Incomodou-me muito, por isso, a postura da Ministra. Tenho certeza, incomodou muito as mulheres e todos que, ao invés de “naturalizar” a discriminação – com a justificativa de que “sempre foi assim”, “sempre se falou assim” –, lutam contra ela.

Carmen Lúcia mandou mal ao desdenhar da “PresidentA”, com base no que sempre se falou. Chegou, por méritos próprios, num posto tão alto na estrutura do poder, e, então, com um argumento equivocado, deixou para lá o sentido trazido naquele “A”. O “A” que não é da Dilma. É o “A” que afirma um lugar do feminino.

O “amor” não correspondido pela língua portuguesa fez com que negasse uma luta por reconhecimento que também é dela e na qual certamente ocuparia um papel de protagonismo.