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Está tudo contaminado

Lucila Cano

21/10/2011 07h00

Após a Guerra do Vietnã, um amigo voltou de viagem aos Estados Unidos com um souvenir insólito – ao menos para mim – uma jaqueta de uniforme de soldado americano. Ele ostentava a peça que comprou em algum brechó com orgulho e eu imaginava: Quem a teria usado? Estaria vivo ou morto? Por onde teria o soldado se arrastado e se ferido antes de a jaqueta dele cobrir o corpo de um brasileiro?

Não tenho nada contra brechós. Usar roupas “vintage”, dizem os entendidos, está na moda. Eu mesma às vezes uso um par de sapatos de camurça azul-marinho, que ganhei da mãe de uma amiga. Estão novinhos. Ela os usou apenas uma vez, na cerimônia civil do seu casamento, lá se vão mais de 50 anos.

Também costumo doar o que não me serve mais. A regra é lavar, passar e entregar tudo em bom estado, para que outras pessoas possam usar. É assim que funcionam os bazares beneficentes, uma das formas mais comuns de solidariedade.

No entanto, o recente episódio do lixo hospitalar americano descoberto em Pernambuco me avivou a incômoda lembrança da jaqueta de um soldado americano.

Raios-X

Esta não é a primeira vez, e provavelmente não será a última, em que isso ocorre no Brasil. Enquanto a fiscalização não for mais rigorosa e equipada, qualquer coisa pode aportar aqui.

O último desembarque indesejado data de agosto de 2009, quando fomos agraciados com cerca de 1.200 toneladas de lixo tóxico, domiciliar e eletrônico em contêineres vindos da Inglaterra.

Na época, a Justiça Federal recorreu à Convenção de Basileia, da qual o Brasil é signatário, para devolver o lixo ao país de origem. Carlos Minc, então ministro do Meio Ambiente, aventou a necessidade de medidas preventivas, como o uso de raios-X para fiscalização das cargas dos contêineres.

Passados dois anos entre uma apreensão e outra, resta a dúvida: quantos outros presentes de mercadores do lixo já não ingressaram no País?

Lixo globalizado

Em março de 2002, quase uma década atrás, matéria de Maria Eduarda Mattar na Rets (Revista do Terceiro Setor), abordava a questão do lixo eletrônico – igualmente tóxico – com propriedade.

Dizia ela que, sob a fachada de “doação de equipamentos”, a sucata eletrônica de países desenvolvidos tinha como destino mais comum países da Ásia, onde grupos familiares extraiam ouro e prata dos componentes, com falta de cuidado no processamento das partes e consequente poluição da natureza, além de outros males.

Trecho da matéria informava: “O relatório ‘Exporting Harm - the High-Tech Trashing of Asia’, elaborado pela Basel Action Network - BAN, rede global de ativistas que ‘lutam pela justiça ambiental’, e pela Coalizão de Tóxicos do Vale do Silício, com apoio do Greenpeace China, Toxic Link India e Sociedade para a Conservação e Proteção do Meio Ambiente, do Paquistão, veio a público no final de fevereiro e lançou mais luz sobre o assunto. O documento denuncia em mais de 50 páginas o envio prejudicial do lixo para China, Índia e Paquistão. Segundo o estudo, 50% a 80% do lixo eletrônico - ou E-lixo - coletado nos EUA para reciclagem são exportados, devido à mão de obra barata, falta de legislação e padrões ambientais rígidos na Ásia e pelo fato dessa prática ainda ser legal na terra de Tio Sam. Motivo: o país mais industrializado do mundo, e principal consumidor de artigos de informática, não assinou a Convenção da Basileia, pois, segundo a legislação americana, os componentes eletrônicos são materiais recicláveis e, não, resíduos”.

Notícia mais recente (Ambiente Brasil, 15/10/2011), e não menos alarmante, repercute informação da Folha.com e diz que um em cada seis telefones móveis no Reino Unido tem a bactéria E.coli (encontrada em fezes humanas), de acordo com pesquisa divulgada pelo jornal The Guardian.

A pesquisa, realizada pela London School of Hygiene and Tropical Medicine e pela Queen Mary University of London com pessoas do Reino Unido, indicou que 92% dos aparelhos avaliados estavam com pelo menos algum tipo de bactéria. Das mãos avaliadas, 82% estavam com alguma bactéria.

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.