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Um novo tempo

Lucila Cano

30/08/2013 11h45

Conheci a Margarete na plateia de uma palestra. Ela sentou-se ao meu lado, carregada de coisas: livro, cadernos, pasta, bolsa, casacos. Mal conseguia segurar tudo. Quem puxou conversa fui eu. Bati o olho na capa do livro (um título estranho chamou a minha atenção) e perguntei pelo conteúdo. Começamos a conversar.

Os casacos tinham destino certo. Seriam distribuídos a moradores de rua. Fazia frio naquela noite. Ela me contou ser bacharel em turismo e quis saber o que eu fazia. “Eu escrevo”, respondi-lhe. “Ah, você é escritora?”, ela tentou adivinhar. “Não! Escrevo muitas coisas. Trabalho em comunicação.”

Como a curiosidade dela ficou por aí, calei-me. Não me sinto à vontade para falar de mim a pessoas que pouco conheço. De mais a mais, ela reagiu à notícia de minha atividade de um jeito engraçado: “Nossa, então não posso escrever para você, porque você vai achar erro em tudo”. “Não tenho o hábito de corrigir as pessoas, até porque eu também erro. Português é muito difícil”, disse-lhe.

Na sequência, a Margarete quis saber se eu tinha e-mail. “Você gostaria de receber uma agenda semanal de eventos? Muitas das pessoas nesta sala recebem a minha agenda. Eu direciono as informações para o tipo de atividade das pessoas. Então, se você quiser, me passe o seu e-mail”, ela foi falando e já pegando uma caneta para as anotações.

Nomes e endereços trocados, após a palestra ela ficou de me enviar a tal agenda e se despediu: “A gente se encontra por aí, em algum evento”.

Para refletir

Alguns dias depois, passei a receber a agenda: uma planilha Excel, na qual a Margarete lista dia, área, horário, nome do evento, local, se é gratuito ou pago, dá telefone e site para interessados fazerem contato. Educadamente, agradeci a gentileza e ela, educadamente, agradeceu minha atenção.

Na semana seguinte, recebi outra agenda. Independentemente dos eventos citados, observei que a Margarete faz um tipo de “página de rosto” à qual anexa a planilha. Na apresentação, ela faz comentários, indica sites para consultas e, ao final, sugere uma letra de canção para o destinatário refletir a respeito. Achei interessante. Agradeci o envio e ela, por sua vez, agradeceu por eu ter me manifestado.

Passada uma semana, chegou uma nova agenda. Na página inicial, a Margarete fornece endereços de ONGs ligadas ao voluntariado, no Brasil e no exterior. Encerra o texto com parte da letra de “Novo tempo”, de Ivan Lins e Vitor Martins, gravada por Ivan Lins em 1998.

Eu me lembrava da música, mas não de toda a letra. Recorri à internet. Li e reli a letra. Ela bem leva à reflexão de muita coisa que ocorre hoje, 15 anos depois da composição. Por certo, leva à reflexão de muita coisa que sempre ocorreu no Brasil e no mundo.

Espírito de voluntário

Na quinta-feira, 22 de agosto, fiquei mal. Logo cedo, vi uma foto terrível na primeira página do jornal: crianças mortas por armas químicas na Síria. Caí na armadilha de ver mais fotos nos noticiários da internet e a sensação de impotência subiu-me à cabeça. Não houve analgésico que me livrasse da dor.

No final de 2011, fiz menção à guerra civil que se desenrolava na Síria e cheguei a falar em 5.000 mortos. Hoje, mais de cem mil pessoas se foram para a vala comum de um conflito insano. Isso, sem falar na população que segue vivente, mas com sequelas eternas.

A distância, parecemos imunes a mais uma tragédia patrocinada pela ignorância do ser humano, mas só aparentemente. Meu irmão me disse que as fotos são implacáveis. Ele tem razão. Ainda bem que a Margarete me enviou a agenda da semana e me fez ler, ouvir e pensar em um novo tempo (... pra que nossa esperança seja mais que a vingança, seja sempre um caminho que se deixa de herança...).

A seu modo, o que ela faz é um tipo de voluntariado. Usa a internet de maneira original para servir outras pessoas, disseminar informação útil e estimular a reflexão. Obrigada, Margarete. Eu ainda não te agradeci pela agenda desta semana.

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.