Trânsito e mobilidade urbana - O caso da metrópole paulistana
Ricardo Silva
Dentre os vários desafios que as metrópoles brasileiras terão de enfrentar no início do século 21, a questão do trânsito será um dos mais importantes.
O trânsito, mais do que simples deslocamento de pessoas e veículos sobre determinados espaços, representa parte da dinâmica da metrópole e da vida de seus moradores. Na verdade, os deslocamentos de veículos e pessoas se relacionam a certas características socioeconômicas (idade, renda, local de moradia, de trabalho, de estudos, etc.), e, também, a uma disputa pelo espaço protagonizada por agentes políticos que desempenham papéis transitórios (pedestres, passageiros, motoristas, etc.).
É dessa forma que devemos refletir sobre os problemas no trânsito de uma metrópole como, por exemplo, São Paulo, uma das maiores do mundo, com uma população estimada em 18,6 milhões de habitantes, um sistema viário de mais de 15.000 km de vias e uma frota de quase 8 milhões de veículos
O desafio mais imediato para uma metrópole dessa grandiosidade é fazer com que as mercadorias produzidas encontrem o destino desejado, que contratos e documentos importantes sejam entregues aos clientes certos e no tempo adequado - e que, além disso, as pessoas possam chegar ao trabalho, as crianças possam chegar à escola, os jovens à faculdade.
Todavia, é muito comum verificar na metrópole paulistana sucessivos recordes de congestionamento, cenas explícitas de estresse, conflitos entre os motoristas, acidentes de trânsito e grandes prejuízos econômicos e socioambientais.
O modelo rodoviário
No início do século 20, o Brasil tinha apenas 500 km de estradas e uma simples viagem de carro entre Rio de Janeiro e São Paulo levava 33 dias. Cinqüenta anos depois, o país conheceria um grande impulso para o desenvolvimento do modelo rodoviário, que privilegiaria veículos de carga, utilitários e automóveis, em detrimento de outros meios de transportes.
É verdade que, antes da década de 1950, a elite brasileira já apoiava o modelo rodoviário. O presidente Washington Luiz, em 1926, no seu discurso de posse, diria que "Governar é abrir estradas". Mas foi no governo de Juscelino Kubitschek (1956-60), a partir do "Plano de Metas: 50 anos em 5", que esse modelo deu um grande salto, impulsionado pelas indústrias automotivas, que pressionavam o governo a construir estradas e, ao mesmo, estimulavam o uso de veículos (o que, é claro, aumentou o consumo de combustíveis derivados de petróleo).
Entre 1956 e 1960 foram implementados cerca de 15 mil km de estradas (apenas 6,2 mil km pavimentados), o que representou um crescimento de 15% do modelo rodoviário. Atualmente, mais de 60% dos transportes são realizados através de rodovias, com uma frota nacional estimada em mais de 42 milhões de veículos, sendo que 20% dessa frota está concentrada na região metropolitana de São Paulo.
Assim, a indústria automobilística passou a participar ativamente do processo de urbanização das cidades. E, mais do que isso, reformulou a noção de espaço-tempo, determinou hábitos de transporte individuais e modificou o comportamento social, com sérias conseqüências socioambientais.
O privilégio do automóvel
O total de viagens realizadas diariamente na metrópole de São Paulo, segundo a pesquisa "Origem e destino" realizada pelo Metrô em 2002, é de 38,7 milhões. Dessas, 24,5 milhões são viagens motorizadas (47% realizadas por transporte coletivo e 51% por transporte individual).
O crescimento do transporte individual se deve, principalmente, ao crescimento do número de viagens por automóvel, que corresponde a 50% das viagens motorizadas. Outro destaque de crescimento do transporte individual refere-se às viagens feitas por motocicletas, apesar de ainda ser pequena a participação: 2%. Mas se somarmos ônibus, metrô, trem e lotações, as viagens não chegam a 48% do total.
É assim que os automóveis, que representam mais de 70% da frota de veículos na região metropolitana, influenciam diretamente nos altos índices de congestionamento em São Paulo. A título de exemplo, em maio de 2008, o recorde de congestionamento registrado chegou a 266 km de lentidão.
De acordo com o economista Marcos Cintra, da Fundação Getúlio Vargas, uma das conseqüências de se privilegiar esse tipo de transporte é o prejuízo econômico, que chega a 27 bilhões de reais por ano em São Paulo: considerando-se apenas as questões ambientais, as emissões de gases poluentes na atmosfera das áreas metropolitanas - que têm como principal responsável os veículos automotores - causam sérias ameaças à saúde de seus habitantes. Pesquisas apontam, inclusive, que a poluição mata pelo menos 10 pessoas por dia em São Paulo, já que a exposição de duas horas no trânsito equivale a fumar dois cigarros.
Ao que parece, nem o rodízio de veículos - criado em 1997 para coibir a circulação de veículos em determinados horários -, nem as tentativas isoladas de conscientizar o cidadão, nem o incentivo de se utilizar motocicletas (que, segundo a Fundação Seade, já somavam quase 1 milhão em 2007) parecem ser alternativas viáveis para diminuir os congestionamentos em São Paulo.
No que se refere às motocicletas, é verdade que elas ocupam um espaço menor em relação aos outros veículos - e gastam menos tempo e combustível que qualquer outro veículo. Contudo, os altos índices de acidentes com vítimas fatais - especialmente os motoboys - são assustadores. Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), morre, em média, 1 motociclista por dia em São Paulo. Sem contar que as motocicletas poluem até 16 vezes mais que os automóveis novos, pois não vêm com catalisadores instalados de fábrica.
Novo modelo
Refletir sobre a mobilidade urbana significa repensar o modelo rodoviário que, ao longo do século 20, comprometeu gravemente as condições socioambientais das grandes metrópoles espalhadas pelo mundo.
Propor um novo modelo de mobilidade urbana representa, antes de tudo, priorizar um transporte público de qualidade e transportes alternativos não motorizados. É inconcebível, em pleno século 21, uma metrópole como São Paulo possuir apenas 61,3 km de linhas de metrô - sendo que Santiago do Chile, com uma população de 5,5 milhões, oferece 83,2 km aos seus usuários; e Nova York, 479 km. É muito pouco, também, ter apenas 17,5 km de ciclovias em vias urbanas. Em faz-se necessário pensar também num novo urbanismo, que possibilite maior descentralização das atividades econômica, social e cultural.