Lei de Terras - Lei de 1850 contribuiu para manter concentração fundiária
Em se tratando de história, é sempre muito difícil estabelecer uma conexão direta, de causa e efeito, entre um fato do passado e a realidade do presente. No caso brasileiro, talvez uma das raras exceções seja a lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, popularmente conhecida como "Lei de Terras". Aprovada durante o reinado do imperador dom Pedro 2º, seus efeitos podem ser vistos até hoje. Saber do que se trata a Lei de Terras, portanto, pode nos ajudar a compreender melhor a questão agrária no Brasil contemporâneo, especialmente o problema da concentração fundiária.
A nova política de terras do Império foi sancionada menos de duas semanas depois de aprovada a Lei Eusébio de Queiroz, que abolia o tráfico negreiro para o Brasil - considerado, a partir de então, equivalente ao crime de pirataria.
A saída encontrada para suprir a mão-de-obra nas grandes fazendas foi a importação de trabalhadores estrangeiros, particularmente da Europa. Isso ocorreu em função de dois motivos principais: primeiro, porque era bastante elevado o índice de mortalidade dos escravos que ainda existiam no Brasil; segundo, porque a mão-de-obra livre nacional era tida como desqualificada.
Além disso, a própria ocupação das terras havia se tornado uma questão complexa demais, especialmente após a Independência do Brasil, em 1822, quando o sistema de sesmarias foi definitivamente suspenso. Portanto, a aprovação da lei n. 601, cerca de três décadas depois, foi uma tentativa de organizar as doações de terras feitas desde o início do processo de colonização portuguesa, regularizar as áreas ocupadas depois de 1822 e incentivar a vinda de imigrantes para o Brasil, ao mesmo tempo em que se buscava dificultar o acesso à terra por parte desse novo contingente de trabalhadores.
Capitanias e sesmarias
Em 1532, o rei de Portugal, dom João 3º, comunicou a Martim Afonso de Souza, chefe da primeira expedição colonizadora do território lusitano na América, a decisão de dividir as terras de além-mar entre "algumas pessoas que requeriam capitanias [...] no dito Brasil".
As capitanias já haviam sido utilizadas com sucesso na colonização de outros territórios sob domínio português, como as ilhas Madeira, Cabo Verde e Açores. Por esse sistema, a Coroa - na época, carente de recursos financeiros - transferia para particulares a responsabilidade de "ocupar" e explorar determinadas áreas.
Assim, o Brasil foi dividido em 14 grandes extensões de terra, distribuídas entre funcionários da corte e a pequena nobreza de Portugal. Os donatários - como eram chamados os que recebiam as capitanias - tinham o "senhorio" sobre as terras designadas pela corte portuguesa, sendo obrigados, porém, a povoar e desenvolver economicamente o território sob seu domínio.
Para tanto, poderiam conceder sesmarias, isso é, porções de terras destinadas à produção. O sistema de sesmarias havia sido instituído em Portugal no século 14, em meio à grave crise sócio-econômica da Baixa Idade Média.
Com algumas adaptações, as sesmarias foram implantadas também no Brasil, com o objetivo de acelerar o processo de colonização da América portuguesa. Os sesmeiros - nome dado àqueles que recebiam as sesmarias - tinham um prazo-limite de cinco anos para cultivá-las, podendo perdê-las em caso de descumprimento da legislação.
Ocupação ilegal
Entre os séculos 16 e 18, contudo, as capitanias foram, pouco a pouco, voltando para o domínio da Coroa portuguesa, através da compra ou do confisco. Afinal, as terras não eram de propriedade dos donatários, que tinham apenas a posse sobre os territórios, mas sim de Portugal.
Em 1759, sob determinação do Marquês de Pombal, primeiro-ministro da Coroa, as capitanias hereditárias foram finalmente extintas e o Brasil passou a dividir-se em capitanias reais, doadas a fidalgos e religiosos portugueses.
Se até a Independência o território brasileiro foi continuamente repartido entre particulares, depois de 1822 o ritmo das ocupações permaneceu inalterado. Até a aprovação da lei n. 601, as terras do Império foram ocupadas de forma ilegal, especialmente com a expansão das grandes fazendas produtoras de café.
Nesse contexto, portanto, é que foi sancionada a Lei de Terras de 1850, a fim de regularizar a questão fundiária e responder, ao mesmo tempo, aos novos desafios colocados pelo fim do tráfico negreiro e a necessidade de mão-de-obra estrangeira.
Força política dos grandes proprietários
Em 1843, foi apresentada à Câmara dos Deputados uma proposta de regulamentação das terras brasileiras, inspirada no plano de colonização da Austrália. Entre outros pontos, o projeto propunha:
a compra de terras devolutas - desocupadas - por meio de pagamento à vista, em dinheiro e sob altos valores;
- a legalização das sesmarias doadas até 1822 e das áreas que a partir daquela data estivessem ocupadas por mais de um ano;
- o registro de todas as terras num prazo de seis meses, sob pena de confisco;
- a medição e demarcação dos terrenos, sob risco de serem considerados áreas devolutas,
- e a criação de um imposto sobre as terras, que seriam confiscadas em caso de não pagamento por três anos consecutivos ou alternados.
Polêmico, especialmente pela criação de um regime tributário sobre a terra e pelas penas em caso de descumprimento da lei, o projeto foi aprovado sem grandes mudanças e, em seguida, enviado para o Senado, onde permaneceu até 1848. Naquele ano, a proposta foi novamente discutida.
Do projeto original, os senadores suprimiram o imposto territorial e a ameaça de expropriação, substituída por multas. As mudanças evidenciaram a força política dos grandes proprietários de terra, especialmente da província fluminense, descontentes com os termos da proposta inicial.
Do Senado, o projeto retornou para a Câmara, onde foi aprovado em setembro de 1850. Além das mudanças em relação ao texto original, que diminuíam o alcance da proposta apresentada em 1843, várias disposições que restaram na Lei de Terras jamais foram cumpridas.
Concentração fundiária Grande parte das sesmarias e das posses não foi legalizada; as terras do Império continuaram a ser ocupadas de forma ilegal e sistemática; boa parte das propriedades nunca foi medida nem demarcada; as multas, quando aplicadas, poucas vezes foram pagas.
Mesmo tendo sido um passo importante na regulamentação da questão fundiária, a Lei de Terras teve pouca consequência prática, com exceção da dificuldade criada para o acesso à terra pelas camadas mais pobres da população e pelos imigrantes, que se viram obrigados a trabalhar nas grandes fazendas de café.
Na medida em que elevou o preço da terra, exigindo também o pagamento à vista e em dinheiro no ato da compra, a lei n. 601 contribuiu para manter a concentração fundiária que marca a realidade brasileira até hoje.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.