Topo

Português

Camões - Poesia lírica: entre a poética tradicional e o estilo renascentista

Oscar D'Ambrosio, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

Atualizado em 22/07/2013, às 15h40

Quando se pensa na lírica camoniana, é preciso lembrar que o escritor português vivenciou a época clássica da literatura portuguesa, marcada pelo regresso ao país, em 1526, do poeta Sá de Miranda. Da Itália, ele trouxe o soneto, forma racionalista de interpretar o mundo em 14 versos.

Isso se dá no contexto do Renascimento, caracterizado pela ascensão da burguesia ao poder, por progressos técnicos e científicos, como a imprensa, os descobrimentos portugueses e espanhóis, e a busca de novos limites para o pensamento que ultrapassassem a cultura medieval e pela tradição religiosa.

Em Camões convivem dois mundos: a poética tradicional e o estilo renascentista. A primeira está ligada a formas poéticas tradicionais como cantigas, vilancetes e trovas, com o uso da chamada medida velha (redondilha menor e maior, respectivamente com cinco ou sete sílabas métricas) e temas tradicionais populares. É o caso da menina que vai à fonte e abordagens do amor ligadas à saudade.

MOTE
Descalça vai pera a fonte
Lianor, pela verdura;
vai fermosa e não segura.
VOLTA
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
cabelos d' ouro o trançado,
fita de cor d' encarnado...
Tão linda que o mundo espanta!
Chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura.

O estilo renascentista vincula-se a novas formas de composição, como soneto, canção e ode. Utiliza-se a medida nova (versos decassílabos distribuídos em dois quartetos e dos tercetos) e o amor é visto, como fazia o poeta Petrarca na Itália, associado a contradições, sendo as mais célebres entre a vida e a morte e a água e o fogo. A Natureza é tratada como um local aprazível (locus amenus) e a mulher é vista muitas vezes numa ótica platônica, idealizada e distante, mas não despida de sensualidade.

Predomina nos sonetos um sentimento de insatisfação e incompreensão, conhecido como “desconcerto do mundo”. Expressa-se por jogos verbais e conceituais requintados, trocadilhos, metáforas, hipérboles e personificações. Poetas latinos como Virgilio, Ovídio e Horácio são referências, além do já citado Petrarca.

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

Os 14 versos do soneto são um campo ideal para conter a emoção, exercitando uma concentração vocabular. Em termos de raciocínio, é desenvolvida a forma de tese e  antítese rumo a uma síntese, um desfecho conclusivo com unidade. O uso do decassílabo obriga também a procurar a forma de expressão mais precisa possível dentro desse formato racional, em que as capacidades de apresentar e defender uma ideia são absolutamente essenciais.

Dilemas existenciais são disciplinados nesse formato poético. A emoção e a expressão pessoal surgem contidas, mas não por isso menos comoventes. A perfeição que o poeta almeja encontra limitação na sua própria condição humana. É das oposições entre o real e o ideal, o eterno e o transitório, a morte e a vida, e o pessoal e o universal que nasce a tensão lírica que alimenta o texto camoniano.

O poeta não encontra harmonia entre a vida ideal, marcada pela busca do amor, e a realidade concreta. Predomina o desajuste entre o que deseja e o que consegue. Apontado pela crítica como o poeta português mais importante antes de Fernando Pessoa, valoriza a interiorização como forma de atingir a plenitude divina, uma forma de escapar da irracionalidade aparente do mundo.


 

Português