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Clarice Lispector (1) - O mergulho do narrador

Márcia Lígia Guidin, Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação

Clarice Lispector, cuja família era judia, nasceu na Ucrânia em 1920, mas, como veio pequenina para o Brasil, devemos considerá-la, sim, uma escritora eminentemente brasileira. A menina, caçula de três irmãs, cresceu entre Alagoas e Pernambuco e mudou-se com a família para o Rio de Janeiro quando era adolescente, em 1937. Já era órfã de mãe, e essa falta foi muito importante para ela: está registrada em muitas de suas obras. Formou-se em Direito e, para manter-se, trabalhou para revistas e para o jornal carioca A noite.

Embora não fosse muito de badalações, e meio esquisita, como dizem alguns, Clarice circulava entre amigos escritores, entre eles Fernando Sabino, Érico Veríssimo, Carlos Drummond e outros.

Em 1942 ela começa a escrever seu primeiro romance, aos 23 anos. No ano seguinte, casa-se com um colega de faculdade, que ao seguir a carreira diplomática, leva Clarice para viver na Europa, onde ela vai conhecer (e detestar) o clima frio e tenso do fim da 2ª Guerra Mundial. Estando na Itália com o marido e dois filhos, manda editar no Brasil o romance Perto do coração selvagem, de 1943, que acabou ganhando um prêmio - o que a deixou feliz e na expectativa de críticas literárias elogiosas.

O romance introspectivo

Esse primeiro romance, cujo título é tomado do escritor irlandês James Joyce, fez certo alarde entre os críticos brasileiros. Uns críticos acharam a obra intolerável e estranha; diziam que "essa escritora de nome esquisito" queria se exibir. Outros, como Antonio Candido, apesar de não verem na obra a perfeição, reconheceram a coragem dessa escritora desconhecida em usar nossa língua para criar frases introspectivas originais, metáforas extravagantes e enredos muito diferentes dos que os romancistas regionalistas (Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramo, José Lins do Rego) criavam na época, cujas obras engajadas politicamente todos gostavam.

Essa mocinha (que as pessoas imaginavam ter somente 17 anos), na verdade e sem saber, estava introduzindo na literatura brasileira um novo modo de narrar, semelhante ao das escritoras de língua inglesa Katherine Mansfield e Virginia Woolf: o romance introspectivo, cujo enredo (a história) importa bem menos que o "mergulho" do narrador no fluxo de pensamento do personagem.

Esse mergulho é tão abrupto que o leitor depara com ele sem aviso do narrador. Joana, sua primeira protagonista (não podemos chamar essas personagens de 'heroínas', pois o mundo em que vivem não é nada heroico...), aparece no romance já capturada em meio a seus pensamentos. Veja os dois parágrafos iniciais de Perto do coração selvagem:

"A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.

Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer."



Um modo diferente de narrar

Perceba que o narrador captura o pensamento da personagem (nós ainda não sabemos que se chama Joana) e nos mostra isso através do chamado discurso indireto livre. Tal estratégia de criar não foi inventada por Clarice Lispector, mas ela a usou como aspecto central de seu estilo em todas as suas obras (sim, todas!).

Perceba também que a máquina de escrever é "do papai", portanto, logo de início, é a filha que tem seus pensamentos revelados - em total intimidade, pois ela está pensando apenas. Essa menina vai olhar com piedade para as galinhas "que não sabiam que iam morrer" e pensa nas minhocas que essas galinhas iam comer. Ou seja, nada é dito por Joana, para ninguém. É o narrador que a captura, e por isso cria um monólogo interior.

E note as onomatopeias usadas (tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa). Não era habitual na literatura vigente usar esses recursos.

Agora veja como a escritora cria suas metáforas: "uma orelha grande, cor-de-rosa e morta". O que será isso? O que ela quer dizer? Não sabemos ao certo, mas a essas construções esquisitas Antonio Candido deu o nome de "metáforas insólitas", ou seja, metáforas muito inesperadas e bastante originais.

Sabe por que vale a pena determo-nos nesses parágrafos do primeiro romance? Porque toda a obra posterior de Clarice (contos e romances) vai perseguir esse modo de narrar. A partir de 1960, depois de escrever mais alguns romances, Clarice volta ao Rio de Janeiro, já divorciada, e consolida sua grande carreira de contista.