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Sociologia

História e memórias - Filme retrata o conflito entre linguagens que se distanciam

Celina Fernandes Gonçalves Bruniera, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

"Narradores de Javé" conta o caso dos moradores de um povoado fictício, prestes a ter de deixar o lugar por causa da construção de uma usina hidrelétrica. Para tentar evitar a inundação de Javé, eles decidem escrever sobre o lugar e torná-lo um patrimônio histórico a ser preservado.

Antônio Biá é o único com a habilidade para registrar pela escrita a história de seu povo. A ele cabe a responsabilidade de colher os relatos dos moradores e lhes dar um tratamento "científico", ou seja, aquele que a história oficial reconhece como legítimo.

É assim que o filme dirigido por Eliane Caffé (2004, Brasil) nos apresenta o conflito entre a memória dos moradores, os diferentes olhares que ela desvela e, ao mesmo tempo, aquilo que há de comum, a história de uma comunidade, relatada literariamente.

Versão oficial e imaginação
Mais do que o confronto entre a história oficial e a história oral, o filme traz o confronto entre linguagens que se distanciam. Uma é a cientificidade que a história oficial defende como critério para validar o seu conteúdo. Outra é a imaginação que permeia os relatos dos moradores, aproximando as lembranças do vivido e do narrado da literatura.

Com a tarefa de colher e registrar a história do lugar, a personagem de Biá revela o quanto os homens simples são sujeitos da história - e como quem é responsável por relatar essa história também é sujeito. Este não deixa de atribuir sentido àquilo que é relatado, quando escolhe, reúne e dá forma ao que é colhido.

A isenção e a imparcialidade do historiador surgem como impossíveis e reforçam a noção de história como resultado de versões diferentes em confronto. É uma disputa injusta entre o que sabem os homens simples e aqueles que detêm o poder político e econômico.

Laços que unem
Os moradores de Javé lutam para preservar não apenas a cidade e seu patrimônio material. A hidrelétrica não leva apenas as casas, a igreja, o correio (como se isso fosse pouco). Leva também a possibilidade de os vivos chorarem seus mortos no cemitério.

A iminência da inundação de Javé inscreve no âmbito da noção de patrimônio histórico a importância daquilo que lhe é imaterial: a cultura, a criatividade e a imaginação de um povo e os laços que unem as pessoas às outras e àquele lugar.

Declínio da narrativa tradicional
O livro em branco que Antônio Biá apresenta depois de ouvir os relatos dos moradores de Javé sugere a coragem daquele que não quer dar à história oral o destino da escrita. Esta nunca será capaz de registrar a delicadeza, a sutileza, a espontaneidade e a imaginação próprias da oralidade.

É pela oralidade, pelo frescor das recordações, que a narrativa tradicional é introduzida no filme. Elemento por meio do qual a história dos mais simples existe e permanece, a narrativa tradicional também emerge como algo em declínio.

Biá não demora para perceber a função social da escrita no mundo contemporâneo e viver os conflitos de quem se dedica ao registro da história oral.
A coragem de Biá está na sua recusa em escrever a memória de seu povo - e no recuo dessa decisão, quando parece se convencer de que o registro escrito é fundamental.

É a tentativa de registrar as lembranças dos mais simples num contexto em que o passado parece sucumbir na presença de um futuro que promete progresso, bem-estar para a maioria. E se concretiza no apagamento dos traços deixados por quem se opôs às determinações da história oficial.

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