Topo

Para perdão da dívida, estudantes dos EUA têm de provar "certeza de desespero"

Doug Wallace Jr. ficou legalmente cego e desempregado poucos anos após se formar pela Universidade do Leste de Kentucky. Ele tem uma dívida de US$ 89 mil - Ty William Wright/The New York Times
Doug Wallace Jr. ficou legalmente cego e desempregado poucos anos após se formar pela Universidade do Leste de Kentucky. Ele tem uma dívida de US$ 89 mil Imagem: Ty William Wright/The New York Times

Ron Lieber*

Do New York Times, em Plain City (Ohio)

04/09/2012 06h00

Não é fácil se levantar em um tribunal aberto e testemunhar sobre a miséria abjeta de sua situação financeira, mas quando Doug Wallace Jr. tinha 31 anos, não lhe restava muito a perder se tentasse.

A diabete o deixou legalmente cego e desempregado poucos anos após se formar pela Universidade do Leste de Kentucky. Ele deu entrada ao pedido de proteção de falência e rapidamente se livrou de milhares de dólares em dívidas médicas e outras.

Mas seus US$ 89 mil em crédito educativo foram outra história. A lei federal de falência força aqueles que desejam eliminar essa dívida a provarem que sua quitação causará “dificuldades indevidas”. E um componente do teste frequentemente é convencer um juiz federal de que há uma “certeza de desespero” à vida financeira da pessoa durante grande parte do período de pagamento.

“É como se você não tivesse valor na sociedade”, disse Wallace.

Todavia, Wallace apresentou seu argumento. E na quarta-feira, quase seis anos após ter feito o pedido de falência, ele finalmente poderá ter um sinal sobre se sua situação é suficientemente ruim para merecer o cancelamento de sua dívida.

A tentativa feita por ele é tão desagradável que a grande maioria das pessoas falidas nem mesmo a tenta. Mas para o pequeno número de devedores como Wallace que persiste, um pouco de pesquisa acadêmica mostra que pode haver uma chance razoável de se livrarem de pelo menos parte da dívida. Então eles tentam.

Antes de meados dos anos 70, os devedores conseguiam se livrar da dívida do crédito educativo no tribunal de falência da mesma forma que a dívida do cartão de crédito ou do financiamento do carro. Mas após alguns casos de novos médicos e advogados pedindo falência e eliminando sua dívida do crédito educativo (a caminho da concessionária da BMW, presumivelmente), membros ressentidos do Congresso mudaram a lei em 1976.

Em um esforço para proteger o dinheiro do contribuinte em jogo toda vez que um estudante ou pai assina por um novo empréstimo federal, o Congresso a endureceu de novo em 1990 e mais uma vez em 1998. Em 2005, empresas com fins lucrativos que emprestavam dinheiro aos estudantes persuadiram o Congresso a estender as mesmas regras aos seus empréstimos privados.

Mas a cada mudança, os legisladores nunca definiram o que os devedores precisavam fazer para provar que suas dificuldades financeiras eram “indevidas”. Em vez disso, os juízes federais de falência passaram anos fazendo isso por conta própria.

A maioria opta por algo chamado teste de Brunner, batizado segundo um caso que estabeleceu um padrão triplo para os juízes usarem para determinar se podiam livrar alguém de sua dívida do crédito educativo. Ele pede para que os juízes examinem se os devedores fizeram um esforço de boa fé para pagar sua dívida ao tentarem encontrar um emprego, ganhando o máximo possível e reduzindo as despesas. Então vem o exame do orçamento do devedor, com um valor para um padrão de vida “mínimo”, que geralmente não permite muito além de itens básicos, como alimento, moradia e seguro saúde, mais um pouco de recreação barata.

A terceira parte, que estuda a perspectiva do devedor durante o período de pagamento do empréstimo, tem provado ser mais difícil para os juízes de falência, porque os coloca no ramo da previsão. Isso apenas foi complicado pelo fato de muitos juízes federais terem estabelecido o teste de “certeza de desespero” pelo qual Wallace terá que passar em Ohio.

Os advogados às vezes brincam sobre a impossibilidade de superar esse obstáculo alto demais, mesmo quando estão diante dos juízes. “O que eu digo ao juiz é que enquanto tivermos loteria, não há certeza de desespero”, disse William Brewer Jr., um advogado de falência em Raleigh, Carolina do Norte. “Eles sorriem e então decidem contra você.”

Os próprios devedores têm dificuldade em depor em seus casos de dificuldades indevidas. Carol Kenner, que passou 18 anos trabalhando como juíza federal de falências em Massachusetts antes de se tornar advogada do Centro Nacional para Lei do Consumidor, disse que um caso em particular a marcou.

A devedora tinha um histórico de hospitalização por doença mental, mas testemunhou que não sofria de depressão. “Ela estava tão mortificada a respeito do desespero de sua situação que cometeu perjúrio no tribunal”, disse Kenner. “Aquilo me espantou. Essa é a loucura a que esse sistema nos leva.”

Os devedores também distorcem a verdade em outras direções. Em 2008, um juiz federal de falência, do Distrito do Norte da Geórgia, mal conseguiu esconder seu repúdio ao decidir o caso envolvendo uma promotora federal de 32 anos, dona de uma Mercedes e com diplomas de Yale e Georgetown. Com quase US$ 114 mi de renda doméstica, a situação financeira da mulher estava longe de desesperadora, apesar de sua dívida de crédito educativo de US$ 172 mil.

Ninguém monitora quantas pessoas dão entrada a casos indevidos de dificuldades financeiras a cada ano, mas parece ser de menos de 1.000, bem menos do que o número de pessoas que não conseguem realizar os pagamentos do crédito educativo.

Em seu mais recente retrato dos não pagamentos de crédito educativo, o Departamento de Educação relatou que entre os mais de 3,6 milhão de tomadores do empréstimo que entraram na fase de pagamento da dívida de 1º de outubro de 2008 a 30 de setembro de 2009, mais de 320 mil atrasaram seus pagamentos em 360 dias ou mais até o final de setembro de 2010. Aproximadamente 10,3 milhões de estudantes e seus pais tomaram empréstimos dentro do programa federal de crédito educativo durante o ano letivo de 2010-2011.

O motivo para tão poucas pessoas tentarem se livrar da dívida pode ser o desses casos exigirem um processo legal individual do procedimento normal de falência. Além disso, as pessoas que poderiam se qualificar geralmente carecem de dinheiro para contratação de um advogado ou de conhecimento para dar entrada ao processo sem um. E o processo também não é rápido, já que o credor ou o governo federal frequentemente apelam quando perdem. E mesmo se os clientes puderem pagar pela assistência legal, alguns advogados não querem se envolver em casos de dificuldades indevidas.

Essa é a abordagem que Steven Stanton, um advogado de falência de Granite City, Illinois, adotou após tentar ajudar David Whitener, um homem com deficiência visual que recebia auxílio por invalidez do Seguro Social. O juiz não estava pronto para declará-lo em situação desesperadora e lhe deu uma “janela de oportunidade” de dois anos para se recuperar de sua situação financeira, dizendo acreditar que Whitener tinha potencial para obter um emprego “significativo”.

Stanton não via dessa forma. “Foi o último que aceitei, porque fiquei horrorizado demais”, ele disse. “Eu nem mesmo tinha como cobrar do meu cliente. De todos os casos em 30 anos de trabalho com falências, eu saí desse com o pior gosto na boca que já senti.”

Aqueles que vão ao tribunal enfrentam a tarefa intimidante de argumentar contra oponentes especializados em rechaçar a falência.

Quando tentam se livrar de um empréstimo federal, eles frequentemente enfrentam a Empresa de Gestão do Crédito Educativo, a agência fiadora aprovada pelo governo para lidar com uma série de tarefas legais ligadas a empréstimos, da certificação de que os estudantes são aptos a receber os empréstimos até enfrentá-los no tribunal de falência quando tentam não pagá-los.

Em seu site, a agência pinta um quadro de quão difícil é a alegação de dificuldade indevida, notando que as pessoas “raramente” têm sucesso em se livrarem da dívida do crédito educativo.

Mas alguns pesquisadores acadêmicos chegaram a uma conclusão diferente. Rafael Pardo, um professor da Escola de Direito da Universidade Emory, e Michelle Lacey, uma professora de matemática da Universidade de Tulane, examinaram 115 processos legais do oeste do Estado de Washington. Eles descobriram que 57% dos devedores falidos que deram entrada ao procedimento de dificuldade indevida conseguiram se livrar de toda ou parte de sua dívida do crédito educativo.

Jason Iuliano, formado pela Escola de Direito de Harvard e atualmente cursando um programa de Ph.D. em política em Princeton, examinou 207 casos por todo o país. Ele descobriu que 39% receberam liberação plena ou parcial da dívida.

Sua avaliação da posição da Empresa de Gestão do Crédito Educativo sobre a raridade de sucesso? “Eu acho que está errada”, ele disse. Apesar do tamanho de sua amostra ter sido pequena e ele concordar que não é fácil provar a dificuldade indevida e o desespero pessoal, sua avaliação dos dados de falência sugere que 69 mil pessoas por ano buscam esse caminho. E não precisam necessariamente de advogados para argumentar a seu favor, já que ele não encontrou diferença estatística entre os resultados de pessoas que contrataram advogados e aquelas que representaram a si mesmas.

Dan Fisher, o advogado-chefe da Empresa de Gestão do Crédito Educativo, disse que a empresa não tem uma opinião sobre se mais devedores devem tentar a alegação de dificuldade indevida. Quanto ao termo “raramente” em seu site, ele disse que a empresa mantém sua afirmação de que é incomum um processo de dificuldade indevida terminar em uma decisão de liberação da dívida.

Às vezes até mesmo ir a julgamento é um desafio, à medida que os juízes adiam uma decisão quando aparenta haver incerteza no caso ou quando há a possibilidade dos fatos poderem mudar em um prazo razoavelmente breve.

Radoje Vujovic, um advogado de falência do consumidor da Carolina do Norte, por exemplo, tinha mais de US$ 280 mil em dívida do crédito educativo e apenas US$ 23 mil de renda anual.

Quando o juiz A. Thomas Small, um juiz federal de falência no Distrito Leste da Carolina do Norte, examinou o caso em 2008, ele decidiu esperar dois anos antes de proferir a decisão final, dado que Vujovic achava que sua prática de direito poderia crescer. “O custo da esperança deve ser uma negação permanente de liberação da dívida?” perguntou Small em seu argumento por escrito. “A resposta para essa questão não deve ser um ‘sim’ inequívoco. Esperança não basta para encerrar o inquérito e, ironicamente, pender de forma permanente a balança contra um devedor em dificuldades.”

O Departamento de Educação, descontente com o adiamento de dois anos, apelou antes do término do prazo e persuadiu uma instância superior a derrubar a decisão. “Eu manteria minha decisão”, disse Small, que atualmente está aposentado, em uma entrevista. “Se você é forçado a tomar essa decisão, tudo o que você tem é especulação, e especulação não basta para superar o ônus da prova.”

Mas tirar os juízes do campo da especulação exigiria uma nova lei ou um padrão totalmente novo, possivelmente por parte da Suprema Corte dos Estados Unidos. Nenhuma das duas possibilidades parece provável tão cedo.

Enquanto isso, Doug Wallace, o cego de Ohio, está se aproximando do fim de sua longa espera por uma decisão.

Em dezembro de 2010, C. Kathryn Preston, uma juíza federal de falência no Distrito Sul de Ohio, tentou avaliar o desespero de Wallace ao apontar para o testemunho de um perito de que cegueira não necessariamente leva à incapacidade de trabalhar de novo. Mas ela também notou que, como ele vivia em uma área rural, ele enfrentava obstáculos de transporte significativos. Então ela marcou uma nova sessão para 5 de setembro, para lhe dar “tempo adicional para ajustar sua situação”.

A pergunta para Wallace se tornou então que tipo de ajuste ele deveria fazer além do pagamento mensal do empréstimo de US$ 20, ordenado pelo tribunal. Sua rotina não mudou muito. Fora uma cirurgia de hérnia há poucos meses, seus dias consistem de sentar próximo da televisão (ele ainda se vira com um olho que ainda tem um pouco de visão) e visitas regulares à academia de ginástica com seu pai. Seu diploma da faculdade está pendurado na parede da sala de estar, e a noite ele dorme sob ele, no sofá da casa alugada que ele divide com seu pai e sua irmã.

A irmã de Wallace, uma estudante de faculdade comunitária, às vezes está por perto durante o dia enquanto o pai deles trabalha em uma fábrica da Honda. Há alguns poucos visitantes. “Eu tenho alguns amigos que aparecem aqui, mas eles têm as suas vidas”, ele disse. “Então eu não fico os perturbando.”

A juíza não ordenou explicitamente que ele se mudasse para mais próximo de um centro de treinamento, e seu advogado, Matt Thompson, disse que obrigá-lo a fazê-lo o condenaria ao fracasso certo. “Eu não conheço nenhum lugar para onde ele poderia ir na região central de Ohio e viver com US$ 840 por mês”, ele disse.

Logística a parte, Wallace disse ser difícil em imaginar uma melhora geral de sua situação e se pergunta quem contrataria um cego no atual ambiente econômico.

“Se me considero sem esperança?” ele disse. “Sim, olhando para a situação, você me consideraria sem esperança, sabe que dificilmente vai melhorar para mim.”

(*Andrew Martin contribuiu com a reportagem.)

Tradutor: George El Khouri Andolfato