"Ficha ainda não caiu", diz pataxó graduada em medicina pela UFMG
Ainda sob a emoção de recentemente ter se tornado médica pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Amaynara Silva Souza, 27, indígena da etnia pataxó, disse que a “ficha ainda não caiu”, referindo-se ao fato de vivenciar um momento descrito por ela como especial na sua vida e a expectativa de poder ajudar comunidades como a sua.
“Meus pais e uma liderança da minha comunidade participaram da minha colação e festejaram esse momento comigo. Foi emocionante receber o meu diploma entregue por uma liderança”, disse, relembrando a cerimônia, que ocorreu no dia 23 deste mês, em Belo Horizonte. Ela era uma aluna entre os 130 formandos do curso.
Ela e Vazigton Oliveira, 27, outro indígena da mesma etnia que também se formou em medicina, revelaram ao UOL os sentimentos que experimentam e a expectativa para a sequencia da carreira.
Em comum, eles externaram o desejo de, agora, adquirir experiência para assistirem comunidades indígenas, descritas por eles como grupos ainda desemparados na área da saúde.
Amaynara é natural de terras localizadas em Carmésia, cidade a 208 quilômetros de Belo Horizonte, no Vale do Rio Doce. Já Vazigton, conhecido como Zig, é de Cumuruxatiba, situada no sul do Estado da Bahia.
Os dois ingressaram na UFMG, em 2011, por meio do processo seletivo denominado Programa de Vagas Suplementares para Estudantes Indígenas. Além da medicina, o programa ofertou vagas remanescentes em outros cursos e a participação era aberta a comunidades indígenas de todo o país. Esses alunos são colocados juntos em imóvel alugado pela universidade.
Amaynara revelou que a intenção de se tornar médica surgiu na adolescência, época na qual afirmou ter se despertado para as questões que envolvem seu povo.
“Na minha adolescência participei de um grupo de jovens na minha comunidade que discutia as questões sociais e políticas do meu povo. Nessas reuniões percebia o quanto a questão da saúde era ressaltada, principalmente a falta de profissionais que respeitassem e compreendessem o contexto e cultura local”, declarou.
"Nessa época, comecei a refletir sobre como poderia contribuir com isso e, como eu sempre gostei da área da saúde, pensei que como médica poderia contribuir com a luta na saúde indígena”, relembrou.
Vazigton também disse ter sido despertado pelo desejo de se tornar alguém que pudesse começar a mudar o cenário de pouca atenção à saúde indígena.
“A falta de médico fixo em nossa região é um problema constante. Realmente, a rotatividade de médicos na comunidade sempre se fez presente – o que sempre resultou no não acompanhamento longitudinal da saúde. Pensei que alguém tinha que começar a mudar a história da saúde de nosso povo e que aquele alguém poderia ser eu. Sempre gostei da área biológica e esse poderia ser o meu papel”, afirmou.
O jovem pataxó revela que, para conseguir seu objetivo, teve de se adaptar a morar longe da família e em uma cidade totalmente diversa da região onde foi criado.
“A distância de meus familiares, com visitas [apenas] duas vezes por ano, foi a principal dificuldade. O clima de Belo Horizonte, principalmente nos períodos de inverno, me fez adoecer bastante nos primeiros semestres. A alimentação diferente da minha, que é baseada principalmente de peixes, frutos-do-mar e tuberosas. A correria de morar em cidade grande, tendo de pegar transporte público para poder ir a qualquer lugar, isso sem falar no trânsito e seus engarrafamentos – criando um sério problema com os horários”, relembrou.
Por seu turno, Amaynara citou os primeiros semestres e alguns colegas de classe como sendo os maiores entraves para sua adaptação. Conforme a moça, a carga de estudos era grande e havia disputa entre os alunos. Apesar disso, ela ressaltou ter tido a ajuda de outros estudantes.
“Não tínhamos muito contato com o professor e a carga horária de estudos era muito grande. Tive muita dificuldade em algumas disciplinas, mas tive amigos que me ajudaram muito e estudavam comigo nos finais de semanas. Existia muita disputa na turma e muito individualismo. Inicialmente, eu fiquei sem saber como lidar com aquilo”, frisou.
A dupla, no entanto, disse não ter sofrido preconceito dos demais universitários.
Experiência e fusão de conhecimentos
Os dois jovens afirmaram que, a partir de agora, a intenção é adquirir experiência para tornar possível o sonho de ajudar seus pares. Eles aguardam o resultado das provas de residência médica e a intenção é a especialização na área da saúde das famílias.
“Quando pensei em fazer medicina foi pensando na saúde indígena e me formei com o mesmo objetivo, seja meu povo ou outros povos indígenas. Inicialmente quero ter mais experiência e penso que a residência em Medicina de Família e Comunidade vai me ajudar muito nisso”, vislumbra Amaynara.
Segundo ela, sua carreira será calcada na busca em mesclar o aprendizado na UFMG com a cultura medicinal de seu povo.
“Na verdade, durante o meu curso todo eu tentava buscar o diálogo dessas duas medicinas. Fiz um estágio no Projeto Xingu da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) com intuito de fortalecer esse objetivo. Nós indígenas nunca buscamos uma substituição para nossa medicina e sim o diálogo dela com a medicina nomeada como científica”, declarou a moça.
Vazigton disse que as duas vertentes não precisam ser dissociadas.
“Acredito que os dois conhecimentos possam caminhar juntos. Eles não se opõem, se complementam”, disse.
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