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Sem verba pública, pesquisador fica em situação vulnerável: 'Elitização'

Na falta de bolsas, Fernanda Barbosa do Nascimento teve sua iniciação em nutrição bancada por sua orientadora - Arquivo pessoal
Na falta de bolsas, Fernanda Barbosa do Nascimento teve sua iniciação em nutrição bancada por sua orientadora Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Lenharo

Especial para Bocado*

30/11/2021 08h30

Entre julho e agosto deste ano, pesquisadores de todo o Brasil foram surpreendidos por uma falha em duas importantes plataformas onlines ligadas ao governo federal, no que ficou conhecido como "apagão do CNPq" (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

A falha impediu os pesquisadores de acessarem seus currículos na plataforma Lattes, além de sistemas relacionados a pagamentos, renovação de bolsas e prestação de contas.

O acesso aos serviços foi restabelecido após mais de duas semanas, mas se tornou o símbolo de uma crise que começou muito antes. Desde 2016, o CNPq tem seu orçamento reduzido a cada ano.

Em carta aberta, a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) destaca que o valor previsto para o órgão em 2021, de R$ 1,27 bilhão, é o menor desde o início do século, considerando ajustes pela inflação. Em outubro, a ciência sofreu um golpe ainda maior quando uma manobra do governo federal retirou mais de R$ 600 milhões do fomento à pesquisa.

"De maneira geral, há um processo de desvalorização muito forte da carreira científica no Brasil", afirma Flávia Calé, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos e doutoranda no programa de história econômica na USP (Universidade de São Paulo).

Em 2018, o Brasil investiu 1,26% de seu PIB (Produto Interno Bruto) em pesquisa e desenvolvimento, segundo o Relatório de Ciências da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). O valor está abaixo da média mundial, de 1,79%, e muito abaixo de países como Estados Unidos (2,84%), França (2,2%) e China (2,19%).

O baixo investimento em ciência se estende por todo o continente latino-americano, onde a média de investimento em ciência é de apenas 0,66% do PIB. Enquanto a média global de gastos com pesquisa aumentou 19,2% entre 2014 e 2018, na América Latina ela caiu 6,9%.

A reportagem conversou com pesquisadores brasileiros sobre como a crise de financiamento no país tem afetado sua produção científica. Com menos verba pública disponível, eles recorrem a métodos alternativos de financiamento e até se submetem a fazer pesquisa de graça, garantindo sua subsistência por meio de trabalhos em outras áreas.

Nesse contexto, fontes privadas de financiamento tornam-se mais importantes, e pesquisadores podem ficar mais vulneráveis aos interesses das indústrias, dispostas a bancar seus estudos.

Dinheiro do bolso para pesquisa

A nutricionista Fernanda Barbosa do Nascimento sabia que queria desenvolver pesquisa desde que entrou no curso de nutrição do Centro Universitário de Rio Preto, uma universidade particular. Seu objetivo era estudar probióticos.

A professora que ela escolheu como orientadora, que já tinha experiência nessa área, decidiu bancar os custos da pesquisa de Nascimento do próprio bolso. Isso porque a faculdade só tinha uma bolsa para a área de nutrição, que já havia sido preenchida.

"Tivemos que escolher o tema mais básico possível para conseguir desenvolver a pesquisa sem bolsa", conta Nascimento. O estudo avaliou a viabilidade de organismos probióticos em leites fermentados comerciais.

A gente tinha que fazer o básico, que era o que o laboratório permitia. Não tinha grandes estruturas e muita coisa a gente teve que adaptar."
Fernanda Barbosa do Nascimento, nutricionista

Sua professora importou reagentes e pagou tudo o que precisava para cultivar as bactérias. "Ela disse: 'Vejo futuro em você, você tem perfil para ser pesquisadora, então vou bancar essa pesquisa'", conta.

Mesmo com as limitações, a iniciação científica virou seu trabalho de conclusão de curso e ela apresentou resumos em vários congressos.

Formada em janeiro de 2020, ela pretende seguir a trajetória de pesquisadora. Mas, devido ao corte de bolsas, resolveu adiar os planos e, por enquanto, trabalha como nutricionista fazendo atendimentos online.

"Decidi esperar trocar o governo [federal], porque por enquanto não tem condições. Se nada der certo aqui, pretendo tentar fora do país", diz.

Vaquinha online

tartaruga - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O professor Leonardo Peyré Tartaruga tentou vaquinha para fazer pesquisa sobre efeitos da caminhada em pessoas com Parkinson
Imagem: Arquivo pessoal

A falta de verbas também atinge pesquisadores já estabelecidos em suas áreas. Desde que voltou ao Brasil de um pós-doutorado na Itália, Leonardo Peyré Tartaruga, professor associado da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), vem buscando fontes alternativas de financiamento para suas pesquisas além dos editais públicos nacionais. Pesquisador do Laboratório de Pesquisa do Exercício da UFRGS, ele estuda o gasto energético envolvido na locomoção humana.

Em 2017, ele precisava de cerca de US$ 3.800 para um projeto sobre os efeitos da caminhada nórdica —modalidade de caminhada com bastões— em pessoas com Parkinson.

Aconselhado por colegas europeus, ele iniciou uma vaquinha eletrônica na plataforma Experiment, especializada em financiamento coletivo de pesquisas científicas.

"Foi um esforço enorme", conta o pesquisador. "As famílias dos pacientes se mobilizaram, a Associação de Parkinson (APARS) ajudou a divulgar. Tivemos um número grande de gente doando."

Ainda assim, o grupo só conseguiu arrecadar 33% do valor pedido. Por isso, ele não pôde retirar a doação. Quem doou recebeu o dinheiro de volta e o projeto foi temporariamente engavetado.

Pós voluntária

Quando estava terminando seu doutorado, em 2019, a bióloga Rafaela Missagia percebeu que a situação do financiamento de pesquisa no país estava piorando muito.

rafaela - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rafaela Missagia posa com espécimes de roedores da coleção do Field Museum of Natural History, em Chicago (EUA)
Imagem: Arquivo pessoal

"As vagas de pós-doc voluntário começaram a ser mais comuns, o que é um absurdo. Eu mesma me recusei a fazer isso por um ano, até que me vi sem escolha, porque pelo menos evita um buraco no meu currículo", diz Missagia, que hoje é pós-doc voluntária na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

O pós-doutorado é um estágio de pesquisa que pode ser feito após a obtenção do título de doutor. Tradicionalmente, o pós-doutorando recebe uma bolsa de estudos que permite que ele se dedique exclusivamente a esse estágio.

Ela continua trabalhando com os dados do seu doutorado, na área de morfologia funcional de roedores, por isso não tem grandes gastos diretamente associados à pesquisa.

Enquanto isso, trabalha para uma empresa internacional de tradução e inteligência artificial para pagar suas contas.

Missagia ainda se considera sortuda por ter conseguido esse trabalho antes da pandemia, quando a vaga não era tão concorrida. "É um trabalho remoto, tem as horas relativamente flexíveis e paga em dólar", afirma.

Ela reconhece que talvez não conseguisse se manter na pesquisa se tivesse filhos ou se não contasse com o apoio da família.

A pesquisadora não é a única nessa situação. "Mais de 90% da pesquisa científica feita no Brasil está vinculada à pós-graduação. Ou seja, envolve um trabalho direto de pós-graduandos e pós-docs. E só um terço é financiado", afirma Calé.

Por isso, na prática, a maior parte desses pesquisadores realiza trabalho voluntário, o que faz com que somente aqueles com melhores condições financeiras consigam se manter na pesquisa. "Essa elitização da carreira científica é um problema, porque a ciência acaba ficando distante da maioria da população", afirma Calé.

Missagia conta que tem buscado oportunidades para seguir a carreira acadêmica fora do país, assim como muitos de seus colegas. Ana Maria Carneiro, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), afirma que o aumento de relatos desse tipo pode ser um indício de um movimento atual de fuga de cérebros, apesar de não existirem dados formais que comprovem o fenômeno.

'Ilhas de proteção' na nutrição

Apesar do subfinanciamento da pesquisa no Brasil, a área da nutrição vive uma situação singular, diz Inês Rugani, professora e pesquisadora da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) na área de nutrição em saúde coletiva.

Ela cita que a Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (CGAN), do Ministério da Saúde, entende que o fomento à pesquisa faz parte da política pública de alimentação e nutrição. Por isso, há muitos anos o órgão gerencia o financiamento de pesquisas nessa área, muitas vezes produzindo editais através do CNPq.

A pesquisadora descreve essas iniciativas como "ilhas de proteção" da pesquisa de nutrição. "Essas áreas têm conseguido se manter protegidas até recentemente, mas não sabemos até quando."

Paralelamente ao financiamento público de pesquisas, existe um grande interesse das indústrias de alimentos de financiar estudos que possam favorecer seus produtos.

Isso sempre existiu. Mas esse momento de desmantelamento da política de ciência e tecnologia do país tende a deixar os pesquisadores mais vulneráveis a esse financiamento que não vem de dinheiro público."
Inês Rugani, professora e pesquisadora da Uerj

Paulo Serôdio, pesquisador da Universidade de Barcelona que estuda conflitos de interesses na academia, concorda. "Vivemos num contexto em que o financiamento externo no mundo acadêmico é cada vez mais importante, já que o financiamento público é escasso."

O apelo do financiamento pela indústria, diz Serôdio, vem não apenas da possibilidade de desenvolver estudos que de outra forma seriam inviáveis, mas também da expectativa de progressão na carreira do pesquisador.

"Por um lado, esse tipo de financiamento permite aos investigadores desenvolver um trabalho científico inovador, fazer experiências, publicar em revistas internacionais, mas, por outro lado, uma vez que se abre a porta para o investimento privado, da indústria, é uma porta que depois é difícil de fechar", diz Serôdio.

Se o resultado do estudo for negativo para a empresa, é provável que ela não volte a financiar aquele tipo de pesquisa ou aquele investigador específico.

Conflitos de interesse

Rugani, professora e pesquisadora da Uerj, dá um exemplo que ilustra essa vulnerabilidade dos estudiosos diante da falta de verba. Há alguns anos, um grupo da sua universidade concluiu uma pesquisa, que incluía um livro de receitas para lidar com uma determinada condição crônica.

A indústria se ofereceu para pagar pelo livro e, durante um congresso sobre aquela condição crônica, expôs a publicação ao lado de seus produtos —como se a recomendação fosse fazer as receitas usando as marcas daquela empresa.

"Os pesquisadores eram bem-intencionados e acharam que era uma chance de ter o livro disponível para a população. Existia uma intenção legítima, mas a falta de um financiamento institucional para aquela publicação colocou esses pesquisadores no colo da indústria", avalia Rugani.

* O Bocado é uma rede latino-americana de jornalismo sobre sistemas alimentares. Foi idealizado e é um projeto d'O Joio e O Trigo, com parceiros na região.