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São Lúcifer: o santo católico clandestino que a Igreja renega

Montagem mostrando a imagem de São Lúcifer (à esquerda) e a igreja do santo (à direita) Imagem: Francesco Bini (Sailko) e Kurgus/Wikimedia Commons

Do UOL, em São Paulo

01/12/2023 04h00

Acredite ou não, Lúcifer é mais que só o "coisa-ruim" para os católicos - é também um santo. A relação entre São Lúcifer e o Lúcifer diabo não vai além do nome, mas já é o suficiente para que o culto ao religioso não seja visto com bons olhos.

Quem foi São Lúcifer?

Também chamado de Lúcifer de Cagliari, ele nasceu no início do século 4º, na Itália, e viveu até o dia 20 de maio do ano 370.

Sua juventude é desconhecida pelos historiadores - o que se sabe é que ele se tornou bispo de Cagliari, a capital da ilha italiana da Sardenha. Segundo a Enciclopédia Britannica, a primeira aparição documentada do religioso é como enviado do papa Libério ao Imperador Constâncio 2º, solicitando a convocação de um concílio da igreja.

Ele não é canonizado pelo Vaticano, apesar de ser venerado por católicos da Sardenha, na Itália.

Opositor do arianismo e excomungado

São Lúcifer foi um ferrenho opositor da teoria do arianismo. Essa vertente do cristianismo primitivo não acreditava na consubstancialidade de Deus - ou seja: para eles, Jesus não era análogo a Deus Pai, e sim subordinado a Ele.

No concílio convocado por Lúcifer a mando do papa Libério, o bispo de Cagliari defendeu o arcebispo Atanásio de Alexandria, o maior expoente da luta contra os arianistas. Por essa defesa, ele foi confinado por três dias no Palácio Imperial pelo imperador Constâncio 2º.

Lúcifer foi exilado por essa oposição à política eclesiástica imperial. Nesse período, ela passou pela atual Turquia, pela Palestina e finalmente por Tebaida, no Egito.

Durante o exílio, ele escreveu panfletos inflamados ao imperador, nos quais se proclamava pronto para sofrer o martírio por suas crenças.

Os anos exilados também foram de estudos. Estudioso da língua grega e hebraica, ele escreveu contra o arianismo e a reconciliação com a heresia. Suas obras são escritas na forma de discursos proferidos diretamente a Constâncio e se dirigem ao imperador na segunda pessoa.

Após a morte de Constâncio e a ascensão de Juliano, o Apóstata, Lúcifer e outros bispos expatriados foram autorizados a retornar do exílio em 361 ou 362. No entanto, ele não se reconciliou com os ex-arianos.

Ele fundou os 'Luciferianos' para promover suas visões ortodoxas, uma seita que sobreviveu em remanescentes dispersos até o início do século 5º.

Seus seguidores afirmam que Lúcifer foi excomungado. Essa possibilidade é sugerida nos escritos de Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona.

Santo ou não?

Lúcifer é venerado como santo na Sardenha - há, inclusive, uma igreja dedicada ao religioso na região, na qual está enterrada Maria Josefina de Saboia, esposa de Luís 18.

Igreja de São Lúcifer (San Lucifero), em Cagliari, na Sardenha (Itália) Imagem: Kurgus/Wikimedia Commons

No entanto, esse status é controverso. O teólogo britânico John Henry Blunt escreve que Lúcifer foi uma figura divergente até mesmo na Sardenha.

A Igreja de Cagliari celebrou a festa de São Lúcifer no dia 20 de maio. Dois arcebispos da Sardenha escreveram a favor e contra a santidade de Lúcifer. A Congregação da Inquisição impôs silêncio a ambas as partes e decretou que a veneração de Lúcifer deveria permanecer como estava. Os bollandistas defendem este decreto da Congregação, alegando que o Lúcifer em questão não é o autor do cisma, mas outro Lúcifer que sofreu o martírio na perseguição dos Vândalos.
John Henry Blunt em "Dicionário de Seitas, Heresias, Partidos Eclesiásticos e Escolas de Pensamento Religioso" (1874)

Em 1639, o arcebispo de Cagliari, monsenhor Ambrogio Machin, escreveu o "Defensio Sanctitatis beati Luciferi", uma obra em defesa da santidade de Lúcifer, mas fortemente contaminada pelo paroquialismo, tanto que foi ignorada pela historiografia posterior.

Posteriormente, o Papa Urbano 8º, pelo decreto de 20 de junho de 1641, ordenou a todos que se abstivessem de tratar em público da questão da santidade de Lúcifer e de condenar ou defender seu culto até nova decisão da Santa Sé, o que ainda não ocorreu.

O nome de Lúcifer também pesa na santidade ou não do religioso. Por mais que o significado seja "portador da luz" em latim e originalmente representasse o planeta Vênus, o nome foi relacionado ao diabo após interpretações controversas de passagens bíblicas, como Isaías 14:12 e Lucas 10.

Sendo assim, normalmente a Igreja evita menções a São Lúcifer, com o objetivo de se esquivar de mal-entendidos e polêmicas.

Há anos, por exemplo, circula um vídeo que alega que um "canto gregoriano" entoado no Vaticano exaltava Lúcifer (o diabo). Na realidade, porém, o cântico Exsultet, que inclui versos como "Flammas eius lucifer matutinus inveniat", traz a palavra no sentido original, como "portador da luz".

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