Alunos da FEA contestam horas 'desaparecidas' na grade curricular da USP

O curso de economia da Universidade de São Paulo virou alvo de polêmica desde junho, depois que alunos e professores levantaram uma possível ilegalidade na formação universitária. Segundo eles, a grade horária tem menos horas de formação histórica do que é previsto pelas diretrizes do MEC.

Um levantamento feito pelos próprios estudantes, em comparação a dez outros cursos de destaque, atestou que a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária, a FEA, é a única abaixo das horas recomendadas.

Curso tem horas "desaparecidas"

Pelas diretrizes do MEC, todo curso de economia deve destinar ao menos 10% de sua carga horária total à formação histórica. Na FEA, isso corresponderia a 300 horas. Mas na grade questionada por alunos e professores, essa formação é dada em quatro matérias, com 60 horas-aula cada, totalizando apenas 240 horas.

A explicação seria que o último PPC (Projeto Pedagógico do Curso), aprovado pelo Conselho Estadual de Educação em 2022, consta 60 horas a mais de formação histórica do que o efetivamente praticado. Isso porque ele registrou uma das matérias, economia brasileira, com dois créditos-trabalho a mais do que consta para os alunos.

Inscrição da disciplina de economia brasileira em sistema da USP aponta que ela não tem créditos-trabalho
Inscrição da disciplina de economia brasileira em sistema da USP aponta que ela não tem créditos-trabalho Imagem: Reprodução/JupiterWeb

Esses créditos também não constam no plano da disciplina que está disponível no Júpiter, sistema de gestão acadêmica da Universidade, onde os alunos fazem a matrícula.

UOL entrou em contato com o MEC, que destacou que a USP pertence ao Sistema Estadual de Ensino e, portanto, não está sob a regulação e supervisão do Ministério, e sim do CEE-SP (Conselho Estadual de Educação de São Paulo). Até o momento, o Conselho não retornou aos contatos da reportagem sobre o problema.

Três professores da área de história econômica da FEA assinaram um documento em junho deste ano, defendendo que "não há justificativa didático-pedagógica para a inclusão de créditos-trabalho" em economia brasileira ou em qualquer outra disciplina de humanidades.

Como a atual grade está em vigor desde 2022, nenhuma turma já se formou inteiramente sob ela.

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História ganhou força nas redes sociais

As possíveis irregularidades no maior curso de economia do Brasil vieram à tona graças às redes sociais, depois que alunos compartilharam o medo de que, talvez, seus diplomas estivessem irregulares.

"O plano pedagógico do curso está teoricamente atendendo as exigências do MEC. Tanto que ele foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, mas está atendendo de uma forma estranha. Todos os cursos atendem com créditos aula e só a FEA atende com créditos trabalho, que nem constam na nossa grade. A alegação que deram pra gente foi que a secretaria do curso, os funcionários, deixaram de perceber uma discrepância. E daí o Júpiter, o sistema em que é feito a matrícula, não foi atualizado corretamente", conta outra fonte ouvida pela reportagem, que preferiu não se identificar.

A justificativa para o acréscimo dessas horas-trabalho também surpreendeu os alunos: elas corresponderiam a horas de leitura, algo incomum para o curso de economia. Normalmente, os créditos de trabalho na FEA estão ligados a matérias com monitorias, técnicas de pesquisa e monografia. A introdução da leitura para ganho de créditos seria inédita.

Em nota de 20 de junho, os professores Alexandre Saes, Guilherme Grandi e Ivan Salomão, docentes de humanidades na FEA-USP, fizeram coro às preocupações dos alunos, defendendo também que é necessário incluir mais horas de aula, e não horas-trabalho.

A reportagem entrou em contato com a universidade para saber se realmente existe uma lista de atividades que cabem nesses créditos e possíveis implicações de um descumprimento. Se houver retorno, a matéria será atualizada.

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Os alunos ouvidos pela reportagem ainda opinam que, mesmo que os créditos de trabalho passem a ser justificados, o curso de economia da FEA continuaria tendo uma lacuna na formação histórica —criticada desde a aprovação da nova grade.

Aprovação de nova grade foi criticada

Antes da possível irregularidade na carga horária, segundo alunos ouvidos pelo UOL, já existia uma preocupação sobre a parte pedagógica da formação, discutida na época da reforma da grade.

Bruno de Pinho, representante estudantil na época da aprovação da grade, conta que um levantamento feito com 500 estudantes de economia —cerca de 50% do corpo discente — mostrou que a maioria deles se preocupava com mudanças bruscas, incluindo a redução das matérias de humanidades em relação a concorrentes.

Ele afirma que antes da alteração já existia movimentação de alguns docentes para reduzir a importância das humanidades no curso, que hoje conta com apenas quatro professores titulares na área.

"Em 2020, antes mesmo de começar a pandemia, a gente teve uma reunião presencial porque abriram três ou quatro vagas para professores. Começou a discussão de: para qual área vamos contratar? Só que tinha um problema, que era a matéria de introdução às ciências sociais, de 1º semestre, obrigatória. Tinha uma professora que estava só quebrando galho ali e surgiu a opção. Mas a solução foi: 'tá bom, está dando problema nessa matéria, então vamos tirar'."

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Com a chegada da pandemia, em meio ao cansaço e falta de cooperação dos professores, Bruno conta que as discussões entre a coordenação do curso e os estudantes se enfraqueceram.

Possível oportunidade de mudanças

A discussão em torno da grade acontece às vésperas de um programa que deve abrir oito novos concursos para contratação de professores na FEA, o que permitiria uma "flexibilidade maior para fazer alterações na grade do curso e planejar as contratações para viabilizar as mudanças", segundo nota do Centro Acadêmico.

Além de resolver a questão das horas-aula de formação histórica, uma mudança também resolveria a falta de horas para disciplinas de "formação geral", também previstas pelo MEC, e "que têm por objetivo introduzir o aluno ao conhecimento da ciência econômica e de outras ciências sociais", diz a nota.

As diretrizes elencam oito tópicos a serem abrangidos: "filosofia e ética, sociologia, ciência política e os estudos e propedêuticos da administração, do direito, da contabilidade, da matemática e da estatística econômica". Desses, o curso da FEA deixaria de fora sociologia, direito, ciência política e filosofia/ética.

"No final das contas, até mesmo faculdades que são vistas como mais inclinadas para o mercado, como a FGV e Insper, têm mais horas de humanas do que a USP", comenta um dos alunos.

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Em nota ao UOL, a FEA — em conjunto com a coordenação do curso de economia — afirmou que "os cursos de graduação estão atualmente passando por um processo de atualização curricular. Esta atualização está em consonância com as diretrizes da Universidade. (...) O processo também considera análises prévias, bem como aspectos levantados pelos alunos".

Sem responder aos atuais problemas nos créditos, ela afirma que "o processo relativo à estrutura curricular do curso de economia ainda está em andamento". "Estamos comprometidos em garantir que as mudanças reflitam as melhores práticas e atendam aos requisitos acadêmicos e profissionais vigentes", diz a nota da FEA.

"Um engenheiro piorado"

Os alunos destacam também que durante a alteração de grade aprovada em 2020, a coordenação do curso de economia mudou de mãos. O antigo coordenador tinha uma proposta mais modesta, segundo os alunos, levando em conta a disponibilidade de professores. Mas as ideias ficaram de lado depois que seus colegas criaram uma segunda proposta, sem aval do chefe do curso.

"Ele acabou renunciando. Falou que não estava alinhado com o resto do departamento. Eram três ou quatro professores que estavam meio que passando por cima de quem tinha essa responsabilidade, e a proposta deles era megalomaníaca, para 'modernizar' o curso. Mas existe o problema logístico, de ser uma reforma muito grande e sem planejamento pra isso", diz Bruno de Pinho.

Segundo ele, os alunos se colocavam a favor de mudanças na grade, com a inclusão de matérias como computação, mas não apoiavam o sacrifício de matérias sobre a formação econômica e social do Brasil.

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"Tinha uma coisa que a gente falava muito, que era: um economista sem formação sociológica é só um engenheiro piorado. Você tira matérias que induzem o questionamento, entender como que você chegou na técnica que está estudando agora", diz Pinho.

Os alunos ouvidos pela reportagem também criticam a concentração de matérias densas e muito matemáticas nos primeiros anos, em um curso que, apesar da parte exata, é de Humanas.

Bruno e um outro representante discente chegaram a expor aos professores as conclusões da pesquisa feita com os alunos, que abordava ponto a ponto da possível reforma. Mas a discussão nem começou: um dia depois da reunião, a nova grade foi aprovada.

Na nota ao UOL, a FEA afirmou que as mudanças são "resultado de deliberações em órgãos colegiados", o que "visa promover a participação mais ampla e a representatividade na tomada de decisões institucionais".

"Ao envolver diversas vozes e perspectivas, essa abordagem procura assegurar que as decisões tomadas reflitam distintas visões da comunidade universitária. Além disso, estimula um ambiente de transparência e participação ativa. As deliberações finais dependem da posição da maioria e são resultado dessa construção coletiva sobre caminhos a serem seguidos", diz a nota.

"Estudei na FEA nos anos 70, currículo hoje é mais conservador"

Leda Maria Paulani, 70, é professora sênior da FEA-USP. Depois de mais de 30 anos dando aula, ela se dedica apenas a uma disciplina optativa e conta que todas as obrigatórias que lecionou ao longo da carreira —sempre de humanidades— já foram extintas.

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Formada em economia e jornalismo pela universidade, ela não poupa críticas ao "conteúdo 90% técnico" da atual grade.

"Dei aula por muito tempo de introdução às ciências sociais, mas o curso da FEA sempre foi absolutamente conservador", avalia Paulani, que enxergou um "respiro" apenas nos anos 1980, época em que foi aprovada no concurso para professora da USP.

"Eu estudei na FEA na alta ditadura, de 1973 a 76. O currículo de hoje é muito mais conservador do que o daqueles anos. É muito mais puro, ortodoxo, técnico, porque a gente tinha quatro disciplinas de história, hoje a gente tem duas."

A professora discorda da visão da economia como uma área apenas técnica, mas afirma que a reforma de 2020 foi "apenas a cereja do bolo" de uma tendência que existe há décadas.

A contratação de professores para matérias de humanidades, como apontado pelos alunos, fica em segundo plano durante os concursos.

"Chegamos a um período em que nós ficamos 16 anos sem contratar professor de história econômica. Porque os professores foram se aposentando, saindo da faculdade. E quando chegava a hora dos concursos, era sempre para teoria econômica ou métricas de econometria", diz.

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Paulani ainda destaca que a falta de alinhamento entre a FEA e o MEC não é inédita. Uma das matérias já oferecidas pela docente ficou por anos fora da grade, mesmo sendo, à época, parte do currículo mínimo do MEC.

"E hoje não tem mais. Quer dizer, 'mal e mal' o cara passa por alguém que fala para ele o que é PIB. É triste, mas não espanta. É fato que hoje o departamento tem muito menos professores do que já teve, mas isso afetou a universidade inteira, não só o curso de economia, e o cara precisa sim saber história."

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