Transenem: o cursinho que está colocando trans e travestis na universidade
Com 35 anos, Raul Capistrano já tinha deixado de frequentar qualquer lugar onde seu nome de registro fosse mencionado - até que se tornou aluno de Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Nathan Neubaner, de 20 anos, terminou o ensino médio em 2013, mas decidiu esperar a transição de gênero antes de prestar o exame para Engenharia.
Após trabalhar como cabeleireira por 32 anos, Kéia Brandão decidiu, aos 51 anos, estudar Química na universidade.
A história dos três tem um ponto em comum: para alcançar seus sonhos, fizeram - ou estão fazendo - aulas no Transenem, cursinho preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em Belo Horizonte voltado para pessoas trans e travestis.
O projeto surgiu em agosto de 2015, com aulas apenas aos sábados, por iniciativa de Ana Isabel Lemos, assistente social, e de Adriana Valle, advogada trabalhista.
Logo na primeira tentativa, menos de três meses depois, o grupo conseguiu três aprovações entre 12 alunos. Hoje, Raul estuda Filosofia na UFMG, Nathan frequenta Engenharia Ambiental no Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica) de Minas e Sofia cursa Biblioteconomia na UFMG.
Em 2016, o projeto ampliou as atividades: as aulas passaram a acontecer todos os dias à noite em uma sala cedida pela Secretaria de Estado da Educação. A equipe conta com 12 professores e mais de 30 monitores, todos voluntários.
Abrindo portas
A iniciativa visa a abrir portas para indivíduos cujas dificuldades ultrapassam as fronteiras da sala de aula.
Depois de concluir o ensino médio, Nathan começou a pesquisar o que poderia fazer para se sentir melhor com sua identidade. Trabalhou para bancar consultas médicas e medicamentos, já que a família não aceitava sua identificação com o gênero masculino e não apoiava a ideia da transição.
Ele conta que fez a transição de uma só vez, por não querer ser visto como uma mulher homossexual. "Não tenho problema com a identidade trans, mas eu não iria assumir uma identidade lésbica, que não era a minha", diz.
Quando sua aparência começou a mudar com os hormônios, Nathan viu suas chances dentro da empresa - uma concessionária de veículos - acabarem. "Eu tinha medo de perder o emprego, e perdi", relembra.
Quando finalmente se sentiu confortável para voltar a estudar, inscreveu-se em um cursinho intensivo tradicional. A experiência reforçou as dificuldades que sentia em casa e na rua.
Em pouco tempo, passou a frequentar apenas a sala de redação e estudar por conta própria, para evitar piadas transfóbicas e machistas em sala de aula.
Em certa ocasião, conta ele, professores do cursinho disseram aos alunos que um colega docente estava se relacionando com um "traveco". Nathan ficou bastante incomodado.
"Eles falavam de forma vulgar e desrespeitosa. De uma hora para outra, isso se tornou corrente entre os professores e os alunos também começaram a reproduzir as falas."
Com Raul, a pressão no ambiente escolar começou mais cedo. Antes de passar pela transição, ainda na adolescência, desistiu da escola por não querer mais suportar as pressões típicas do período.
O diploma do ensino fundamental foi suficiente para conseguir um bom trabalho coordenando a área de Tecnologia da Informação em uma empresa de projetos industriais, onde ficou por 12 anos.
Por muito tempo, a empresa foi um dos únicos lugares onde ele se sentia confortável. "Eu era lido como uma lésbica masculinizada, até que começaram a me pressionar a vestir roupas mais femininas para apresentar projetos fora da sede. Pesquisei por que não me sentia bem naquela situação e descobri a transsexualidade", comenta.
Pouco após entender que poderia fazer a transição, Raul iniciou as aplicações de hormônio. O processo não é instantâneo - e nesse intervalo várias pessoas se afastaram dele.
"O momento mais incrível de sua vida é quando você descobre que é possível adequar sua aparência física ao gênero com o qual se identifica. Aí você mergulha de cabeça. Só depois pensa sobre como será no emprego, na escola, na família", afirma.
Em dado momento durante a transição, Raul percebeu que sua presença na empresa passou a ser incômoda. "Minha aparência não coincidia com meu nome, mas não queriam respeitar o nome que tinha escolhido. Não queria mais usar o banheiro de antes, mas não tinha jeito. Não entendia nada de direitos naquela época", relembra.
Rede de apoio
Entre agosto e outubro, um grupo de professores voluntários se organizou aos sábados na casa de Adriana, uma das fundadoras do cursinho, para oferecer as aulas.
Nathan conta que a experiência foi completamente distinta. "Na primeira aula de química, com um farmacêutico, quase demos aula para ele perguntando tudo sobre hormônios. Não tinha piada transfóbica. Era um ambiente receptivo, em que discutíamos assuntos que antes eu não podia conversar com ninguém."
Só depois de descobrir que poderia se inscrever no Enem com seu nome social, Raul se deixou convencer por uma amiga a fazer a prova.
Em 2015, ele esteve entre as 278 pessoas no Brasil que tiveram a solicitação para uso do nome social aceita. Neste ano, esse número cresceu 46%.
A importância do uso do nome social para pessoas transsexuais é tão grande que no primeiro semestre do ano passado Raul havia desistido de enfrentar qualquer situação em que seu nome de registro fosse mencionado.
Ele não conseguia mais passar por constrangimentos pelo fato de seu nome não condizer com sua fisionomia, e por isso deixou de ir a consultas médicas ou procurar trabalho.
Ele diz que se considerava morto socialmente no momento em que conheceu o Transenem. "Quando olhava no espelho, via a imagem que sempre quis ter na vida, mas me sentia péssimo. Vivia com minha mãe e não fazia nada, porque não tinha coragem de sair de casa para buscar serviço."
Quase 20 anos após abandonar a escola, ele ainda se considerava incapaz por não ter absorvido conteúdos de uma educação que supostamente era acessível a todos.
A experiência no projeto, segundo ele, foi transformadora.
"Minha autoestima aumentava quando professores do Transenem explicavam as matérias e eu entendia. Eu percebia que não era burro. Isso nunca aconteceria num cursinho tradicional, onde teria o problema de me expor. Professores de cursinho tradicional têm que fazer comédia para alunos prestarem atenção, e fazem piadas com pessoas trans."
As questões do exame de 2015 caíram como um presente para Raul. "A primeira questão foi sobre Simone de Beauvoir (um dos nomes mais importantes do feminismo). Fiquei tão feliz que tive náuseas com medo de errar. O tema da redação era violência contra a mulher. Se não fosse bem naquele tema, em qual tema iria?" relembra.
Transformando realidades
Neste ano, o segundo do projeto, as aulas foram ampliadas para todos os dias, das 19h às 22h. Por meio de parceria com a Secretaria de Estado de Educação, o grupo conseguiu uma sala de aula numa escola estadual, e oferece lanche aos alunos e alunas.
Os integrantes também se organizam para participar de eventos em que possam arrecadar verba para custear passagens e material escolar para interessados e interessadas.
A atuação do coletivo também vai além dos limites da sala de aula.
Affonso Novaes, 32 anos, professor de Geografia, conta que o grupo se mobiliza para participar de seminários, ir a peças de teatro e a eventos que abordem o empoderamento das pessoas trans.
"As aulas não são centradas apenas no conteúdo do vestibular. Falamos de empoderamento, de ocupação urbana. Precisamos ser uma estrutura de apoio para alunos que já estão estudando, porque ali é um espaço em que você vive plenamente. Fora dali, o pau quebra", explica.
Questionados se percebiam algum aspecto negativo em frequentar um cursinho que não é aberto a qualquer pessoa, os participantes não citaram problemas.
Nathan foi aprovado na PUC-MG, mas após a matrícula soube que seu nome social só seria aceito na lista de chamada, e não no sistema online e em outros documentos acadêmicos.
"Se enviasse uma mensagem virtual a um professor, teria que explicar quem era e isso seria um constrangimento. Fiquei uma semana e saí", conta.
Para fazer a inscrição no Cefet, teve ajuda de Ana Isabel, uma das fundadoras do Transenem e que trabalha como assistente social na instituição. Assim, não teve problemas, e agora planeja ajudar os próximos alunos. "Quero abrir caminho para outras pessoas terem o mesmo respeito que eu tive."
Além do nome, a aparência física ainda é motivo de discriminação na universidade. Na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, não é diferente.
"Sei que não tenho problemas aqui porque mudei minha aparência física perfeitamente como que dizem que deve ser feito. Existem pessoas trans aqui que os outros sabem que são trans por motivos físicos e elas sofrem preconceito. Tenho dificuldade em incentivar as pessoas a virem para cá porque sei que podem sofrer", conta Raul.
Ainda assim, Keia, 51, e Michelle, 42, alunas do Transenem em 2016, estão determinadas a vencer todos os obstáculos, e veem os alunos e alunas do ano passado como inspiração.
"Ano passado as aulas eram só aos sábados e mesmo assim eles conseguiram passar com uma nota excelente. Se eles conseguiram, com certeza a gente também vai conseguir", afirma Keia.
A experiência de Raul e Nathan revela que, para uma pessoa transsexual, acessar o ensino superior tem uma importância simbólica que extrapola a relevância do diploma acadêmico.
Para Raul, é nesse ponto que o Transenem está transformando a realidade. "Só ter passado por essa experiência prova que qualquer pessoa trans pode estar nesse lugar. Sei que se sair daqui hoje essa história minha de um semestre e meio já conta."
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