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‘Como virei consultor na Europa com o que aprendi na escola pública’

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Mona Lisa Dourado

De Recife para a BBC Brasil

11/10/2016 07h48

Imagine uma escola pública com um dia assim: aula de biologia, depois design e português. Pausa para o lanche. Multimídia, geografia e fotografia. Almoço no colégio e mais atividades: química, programação de games e história. Quando o sino toca, às 17h, ainda há monitoria de mídia, oficina de artes e robótica para quem tiver disposição.

Foi em um ambiente como esse que o pernambucano Arthur Pessoa cursou o ensino médio, garantindo uma boa nota no vestibular de Sistemas da Informação e logo o carimbo no passaporte para o mercado internacional: hoje, aos 21 anos, é consultor de tecnologia da informação em Praga, na República Tcheca.

"Atribuo grande parte do meu êxito à escola. Aprendi, por exemplo, a programar jogos em terceira dimensão, algo que às vezes não é ensinado nem na graduação e foi essencial para minha carreira fora do país", afirma.

Pessoa é um dos 1.119 alunos formados na Escola Técnica Estadual Cícero Dias/Nave, ou apenas Nave (Núcleo Avançado em Educação) Recife. Com metodologia inovadora, a instituição acabou se tornando referência em ensino médio profissionalizante no país.

Quem entra na escola pode escolher cursar, além do currículo tradicional, programação de jogos ou multimídia. Ao final de três anos, o aluno costuma sair com bagagem para encarar desafios do século 21 em áreas como design e inteligência artificial.

Filho de um professor e uma enfermeira, Pessoa tentou a vaga por sugestão dos pais. Levava jeito para computação e lógica e viu uma oportunidade de aprofundar o conhecimento.
"No curso desenvolvi softwares para dispositivos móveis. Por esse conhecimento prévio consegui estágio no primeiro período da faculdade e tive facilidade na busca por oportunidades internacionais", conta.

Também foi útil, afirma, aprender a ter uma rotina de trabalho desde o colégio. "Como a escola era integral, passávamos cerca de nove horas lá todos os dias úteis. Aprendi ainda ensinamentos profissionais como data de entrega de tarefa e documentação de projetos."

O recifense hoje divide um apartamento com dois amigos franceses, trabalha oito horas por dia e ganha o equivalente a R$ 5,3 mil mensais. Nas horas livres, faz bicos em publicidade. Para o futuro, planeja voltar ao Brasil e contribuir de alguma forma para a educação no país.

Autonomia

Mães, pais, empresários ou repórteres - seja quem for o visitante, na Escola Cícero Dias os alunos são os anfitriões.

"Ouvi nos primeiros dias aqui que aprenderia a ser protagonista da minha própria vida. Foi o que mais me marcou. Da forma criativa como o conteúdo é mostrado, a cabeça da gente se abre para um monte de possibilidades", diz Pedro Gomes, 15 anos, aluno do 1º ano.

Com orgulho e desenvoltura, ele apresenta a estrutura da escola: salas temáticas, laboratórios de mídia-educação e estúdio de produção audiovisual, entre outros espaços.

A proposta é desde cedo incentivar os estudantes, de 14 a 17 anos, a desenvolver raciocínio lógico e senso crítico, criando soluções para problemas atuais com o uso de ferramentas tecnológicas.

A ex-aluna Jacqueline Alves, 18 anos, hoje estudante de Engenharia da Computação na UFPE, aplicou esse conhecimento ao participar, no ano passado, de um desafio de inovação para meninas em São Francisco, nos EUA.

"Eu e outras quatro amigas recebemos a tarefa de resolver um problema na nossa comunidade. Lembramos da falta de água e criamos um jogo que ensina crianças a economizar", conta. No aplicativo, o usuário leva a personagem Vitória a desligar torneiras e apagar luzes de apartamentos.

Laboratório de programação e multimídia da escola - Heudes Regis/BBC  - Heudes Regis/BBC
Laboratório de programação e multimídia da escola
Imagem: Heudes Regis/BBC
Para Acássia de Santos, 17 anos aluna do 3º ano, essa oportunidade de aprofundar o conteúdo das disciplinas regulares com o desenvolvimento de produtos digitais é o que mais motiva os alunos.

Ela cita como exemplo a animação sobre adoção de animais que criou. "Estudamos características físicas, hábitos e a relação dos bichos com o homem para discutir a questão do abandono. Quando aplicamos na prática, os conceitos deixam de ser abstratos", diz a jovem, que pretende cursar engenharia e sonha em abrir uma empresa.

Na hora de avaliar o desempenho dos alunos, prova de múltipla escolha é peça de museu na Cícero Dias - o foco é voltado a projetos e questões discursivas.

"Em vez de lidar com disciplinas como biologia, matemática, física e português de forma isolada, visando somente o vestibular, os estudantes enxergam na prática o reflexo dos conteúdos no cotidiano", resume o professor de programação e design Maurício Taumaturgo, 23 anos.

As soluções desenvolvidas pelos alunos, muitas com potencial para se transformarem em start ups, também passam pelo crivo de empresários da indústria criativa em um evento anual.

Funcionamento

Maurício Taumaturgo, professor, e Luiz Araújo, coordenador de multimídia - Heudes Regis/BBC  - Heudes Regis/BBC
Maurício Taumaturgo, professor, e Luiz Araújo, coordenador de multimídia
Imagem: Heudes Regis/BBC
A escola é fruto de uma parceria público-privada firmada em 2006. Integra um programa do Oi Futuro, braço social da operadora de telefonia, com a Secretaria de Educação de Pernambuco. Nasceu como projeto de responsabilidade social e qualificação profissional e ganhou status de escola técnica integrada em 2010.

A empresa banca professores, funcionários e laboratórios dos cursos técnicos. O governo responde pelos docentes de disciplinas regulares, alimentação, laboratórios de ciências e uniformes. O material escolar vem do Ministério da Educação.

"O Nave se baseia em três pilares: escola, centro de pesquisa para estudo e qualificação dos professores e disseminação, compromisso com a replicação das metodologias", descreve o coordenador do Centro de Pesquisa do Oi Futuro, Júlio Magno Horta.

A coordenadora do Nave, Mariana Christovam, diz que o pedido de recuperação judicial que a Oi fez em junho deste ano não ameaça a continuidade do projeto. Por dificuldades financeiras, a operadora chegou a fechar uma escola livre de arte e tecnologia que mantinha na cidade para jovens de baixa renda.

Perspectiva

Aluna do segundo ano, Talyta Pacheco, 17 anos, participou da criação de um aplicativo para direcionar sobras de alimentos de restaurantes para instituições de caridade. A partir desse tipo de experiência, conta, definiu o seu futuro profissional.

"Nunca tinha mexido com programação antes e não sabia o que queria. Agora decidi fazer vestibular para Sistemas da Informação, que lida com gerenciamento de projetos", afirma.

Estimular os alunos a trabalhar em grupo ainda contribui para o desenvolvimento das habilidades de relacionamento interpessoal, explica o coordenador de multimídia dos cursos técnicos, Luiz Araújo.

"Queremos que entendam todo o ciclo, do nascimento de uma ideia até sua publicação como produto. Buscamos simular as situações que irão encontrar na vida pessoal e profissional, em qualquer área", diz.

Falar em público com segurança também entra no pacote, como revela Isabela Vasconcelos, 16, aluna do 2o ano. "Saber se apresentar bem dá credibilidade ao que você está dizendo", destaca.

A rotina na escola pode parecer cansativa - grade obrigatória de 7h30 às 17h e atividades extraclasse na hora do almoço e no pós-aula -, mas a rotina com disciplinas regulares e técnicas intercaladas faz o tempo correr, diz a ex-aluna Jacqueline Alves.

"A relação dos alunos com os professores é muito bacana. Como passamos o dia inteiro na escola, acabamos tendo muito contato com os professores. Se temos qualquer dúvida, podemos ir atrás deles a qualquer momento na sala dos professores", lembra.

Hoje estagiária da escola, Juliane Travassos, 20 anos, deixou aos 16 anos a casa da avó, na Ilha de Itamaracá, a 45 km do Recife, e foi morar na capital com a irmã mais velha para poder estudar na Cícero Dias. "Valeu cada sacrifício", relata.

"Cheguei ao curso superior (de Cinema) sabendo fazer roteiro, storyboard e distribuir tarefas, coisas que meus colegas nem conheciam. Era a mais disputada para trabalhos em equipe."

O coordenador de mídia-educação Roan Saraiva, 24 anos, é outro ex-aluno que hoje trabalha na escola. "Desde que cheguei aqui, em 2007, me envolvi em tudo. Fui monitor e participava das oficinas extras", diz. Para ele, o engajamento dos alunos é a chave do sucesso do colégio.

Reconhecimento

Aplicativos, animações e games idealizados pelos alunos da Cícero Dias/Nave Recife têm competido e vencido em concursos nacionais e internacionais, como Anima Mundi, Pequeno Cineasta, SB Games, Global Game Jam e Technovation.

Desde 2012, a escola é primeiro lugar no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) entre os cursos técnicos estaduais. Em média, 80% dos alunos são aprovados em cursos superiores, e 20% deles continuam na área de tecnologia. Em 2013, o colégio recebeu o título de escola inovadora da Microsoft, entre 80 escolhidas pelo mundo.

Apesar do sucesso da iniciativa, o instituto Oi Futuro diz não ter perspectivas de abrir novas escolas. Afirma, contudo, que trabalha para replicar metodologias criadas por professores do Nave Recife, como a do "educador-orientador", de acompanhamento personalizado do aluno.

O governo de Pernambuco afirma que quer ampliar parcerias com o setor privado na educação no Estado, e cita um caso no interior em que uma indústria de baterias automotivas financiou laboratórios e projetos de pesquisa em uma escola técnica da cidade.

Ainda neste ano, a gestão prevê lançar um projeto para incentivar estudantes da rede estadual a desenvolver atividades de programação. O objetivo, diz o secretário da Educação, Fred Amâncio, é estimular o aprendizado de matemática e física e despertar o interesse em carreiras de tecnologia. Tudo inspirado nas práticas da Cícero Dias.