Mãe de brasileira com Down luta por educação em escola comum na Suíça
Aos 15 anos, Letícia Nogueira está aprendendo francês e sonha ser chef. Assim como outras adolescentes, quer trabalhar com o que gosta e ser independente. A família acredita nesse objetivo, mas teve que lutar muito para garantir acesso e oportunidade na Suíça, que tem uma das sociedades mais avançadas da Europa.
Letícia nasceu com síndrome de Down.
No Brasil, frequentava uma escola convencional. Estava enturmada com os colegas, incluída no sistema educacional, sem distinções. Mas ao se mudar do Estado do Rio de Janeiro para o Cantão de Vaud, a família foi confrontada com a visão de que crianças com Down deveriam ser colocadas em escolas para crianças especiais.
No dia internacional que marca a conscientização da síndrome de Down (21 de março), muitos ainda enfrentam preconceito, mesmo nas sociedades mais avançadas, e precisam lutar para ter seus direitos garantidos.
Até conseguir a inserção de Letícia em uma escola comum na Suíça, a família Nogueira percorreu um caminho de altos e baixos, passando por diversas reuniões, negociações e testes.
Preconceito
"Ela lê, escreve, acompanha bem a aula numa boa", conta Denise, mãe de Letícia. "O primeiro problema é que o Cantão só é responsável pela educação da criança até os 15 anos. Depois dessa idade, é com o governo nacional. Eles ficavam nesse jogo de empurra, desculpando-se para não dar vaga para ela", explica a mãe, descrevendo o período de incerteza que viveu de julho a novembro de 2016. "Quando explicava que ela estava em uma escola normal no Brasil os avaliadores do governo ficavam incrédulos".
Após ouvir a negativa de diversas instituições particulares e públicas, Denise convenceu uma oficial do Departamento de Educação Especial em Lausanne, capital do cantão de Vaud, a levar o caso a seus superiores.
"Essa inspetora, a Sra. Bertrand, foi a pessoa-chave que nos ajudou".
Graças à profissional, o caso de Letícia foi levado a uma banca para decidir seu futuro.
"Parecia uma bancada de júri, várias pessoas entrevistando minha filha pra ver se ela sabia mesmo aquilo tudo. Eles ficaram surpresos de ver como ela é articulada e decidida. Quando terminaram aquela sabatina, eles disseram: 'Está bem Letícia, o cantão de Vaud vai dar uma chance para você", conta, emocionada, Denise.
Benefícios
Agora, uma profissional bilíngue em português e francês - paga pelo Cantão - acompanha a jovem durante as aulas de conclusão do ensino fundamental, em uma escola pública normal na cidade de Nyon.
"Avaliamos caso a caso. Analisamos o diagnóstico médico, a competência escolar, a vontade da pessoa e o desejo da família. Tudo isso pesa na nossa decisão", explicou à BBC Brasil Philippe Nendaz, do Departamento de Educação Especial.
"Sabemos do benefício da integração das crianças especiais nas escolas normais, mas isso depende da capacidade cognitiva dela", reforçou Emanuelle Bertrand, a oficial que tratou diretamente do caso de Letícia.
Segundo os servidores públicos, as tentativas de inclusão de crianças com Down vêm obtendo melhores resultados na última década.
"O problema é que o governo não garante automaticamente os direitos. Se você não reclamar, eles vão colocar o seu filho em uma instituição para crianças especiais e vão deixar ele jogado lá", critica a brasileira Patrícia Almeida, ativistas pelos direitos das crianças com Down, fazendo referência à Convenção pelo Direito das Pessoas com Deficiência, a qual a Suíça ratificou em 2013.
Mãe de Amanda, que também tem Down, Almeida luta diariamente pela inclusão da filha e lamenta que nem todos os Cantões tenham a mesma postura de "normalização" da criança excepcional.
'Tapa na cara'
No caso da filha dela, que está na Suíça há dois anos e já é alfabetizada, o Cantão de Genebra optou por não investir em sua inserção e disponibilizou vagas somente em escolas para jovens com deficiência.
"Aquilo foi como um tapa na cara. Ela é capaz e determinada, mas eles não quiseram nem saber, simplesmente a excluíram", relembra. "Tenho a impressão de que eles escondem os deficientes por aqui. Nas ruas só se vê cadeirantes. Os que têm Down e outros excepcionais raramente são expostos", avalia.
Decepcionada com o desamparo, a família Almeida optou por educar Amanda com a ajuda de uma tutora, que recebe a menina diariamente em um centro de reforço.
"Mas isso não é como ir à escola. Ela não tem colegas e não convive com outras crianças", lamenta.
A secretaria de Educação do Cantão de Genebra foi contata pela reportagem sobre o caso de Amanda, mas não retornou até a publicação desse artigo.
Cofundadora do movimento "Minha Voz, Minha Comunidade", Almeida articulou junto às Nações Unidas a criação do Dia Mundial pela Conscientização da Síndrome de Down, em Nova York.
Também organizou os debates sobre o tema que ocorrem, nesta terça-feira, no Conselho de Direitos Humanos da organização, em Genebra.
Eugenia
A ativista estima que o preconceito seja apenas a ponta de um iceberg. Cita a "invisibilidade" e a "eugenia" - o controle e a interrupção de gravidezes em casos de fetos com deficiência - como desafios reais às crianças com Down. Para ela, é cada vez mais aceita a noção de seleção genética, o que permite a redução da população com necessidades especiais.
"Já existem países em que não estão mais nascendo crianças com necessidades especiais e isso é alarmante", acredita Almeida.
Na Suíça...
Entretanto, de acordo com dados de 2012 da Organização Mundial da Saúde, a taxa de nascimentos de bebês com Down na Suíça foi de 185 para cada 100 mil nascimentos naquele ano. O índice é bastante superior ao de países vizinhos, como a Áustria, que só registrou oito casos de Down, a Itália, com 22 casos, e a Alemanha, com 44.
Porém, em meados de 2016, os eleitores do país participaram de um plebiscito para permitir que embriões resultantes de tratamentos de fertilização in vitro sejam testados e selecionados geneticamente antes de serem implantados no útero da mãe. Foi a segunda vez que a voz popular aprovou essa seleção genética. Um ano antes, a mesma pergunta já havia sido validada.
Quase 63% dos participantes concordaram com a medida, que na prática permite o controle sobre óvulos com deficiência. A legislação, entretanto, ainda proíbe a triagem de embriões de acordo com sexo, cor dos olhos e outras características físicas.
Também não é possível fecundar óvulos para a obtenção e extração de células-tronco, para tratamento de algum irmão doente.
Opositores da seleção argumentam que há grande risco dessa triagem genética degenerar-se para uma discriminação contra as crianças especiais e as famílias que optam por dar à luz bebês com Down.
"Há a pressão econômica. Eles dizem que custa muito ao Estado criar uma criança com deficiência. Às vezes os médicos constatam que o bebê é especial e já marcam o aborto, sem sequer conversar com a mãe e explicar que ela tem o direito de escolher", conclui Patrícia.
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