Viviane Senna: Brasil ainda não fez lição de casa do século 19 na educação
O Brasil ainda usa mal a quantidade de dados e evidências já produzidos na educação, o que leva o poder público a tomar decisões erradas sobre onde alocar recursos financeiros, avalia Viviane Senna, que comanda há 25 anos o instituto que leva o nome de seu irmão - o piloto Ayrton Senna, que morreu em 1994 - e é dedicado à formulação de políticas públicas educacionais.
Uma das evidências, na opinião dela, é a de que apenas conceder aumentos de salário aos professores não equivale a uma melhoria automática do ensino.
"A única coisa que importa é se a criança está aprendendo, se está desenvolvendo suas competências", disse ela em entrevista à BBC News Brasil na sede do Instituto Ayrton Senna, em São Paulo. "Não é o tempo em serviço (do professor), não é o tanto de cursos que fez. Se você fez tudo isso e o resultado continua ruim, então você fez o curso errado, gastou anos à toa, porque a única coisa que importava não foi conseguida."
Ela defende que, além do salário, é preciso melhorar a formação inicial do professor, a política de estágios no magistério e a vinculação de promoções a melhoria no desempenho dos alunos. "A formação [atual dos professores] é extremamente teórica, conceitual, pouco afeita à sala de aula. É um grande desafio, assim como os estágios, que são para inglês ver. Deveria haver um modelo de residência pedagógica", afirma.
Graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica em São Paulo, Vivianne Senna chegou a ser cotada para o Ministério da Educação (MEC) do atual governo, e reuniu-se antes da posse com a equipe de transição de Jair Bolsonaro para apresentar "diagnósticos da educação brasileira".
A seguir, veja os principais trechos da entrevista com a BBC News Brasil, em que Senna falou também sobre políticas de alfabetização e de competências socioemocionais, cada vez mais valorizadas na educação - demandas do século 21, que o Brasil precisa incorporar ao mesmo tempo em que resolve deficits educacionais ainda do século 19.
BBC News Brasil - Você acompanha a educação brasileira há 25 anos. Nesse período, o que mais te surpreendeu?
Viviane Senna - Os desafios do país são muito conhecidos, diferentemente de 25 anos atrás, quando isso não era tão claro. E as maneiras de enfrentar esse desafio têm vetores absolutamente cruciais. Diria que, para resumir, temos um desafio de aprendizagem que ainda não vencemos - agenda essa que foi vencida pelos países desenvolvidos nos séculos 19 e 20. Tarefas (cognitivas) como ensinar a ler, escrever, calcular e pensar logicamente são clássicas, e países que deram certo conseguiram fazer isso para todos os alunos.
Acontece que essa agenda puramente cognitiva, que sequer foi feita, já não é mais suficiente.
Já temos novas demandas do século 21, que não vão esperar a gente resolver essa lição de casa do século 19
Essas novas demandas exigem outro tipo de competência para além das clássicas - são habilidades socioemocionais, como colaborar, trabalhar em time, ter abertura ao novo, ser criativo, ouvir diferentes pontos de vista e respeitar, ter tolerância e empatia.
O Brasil é que nem um espadachim, que tem que lutar nessas duas frentes ao mesmo tempo.
BBC News Brasil - Você vê (a falta) dessas habilidades como um problema nacional? Para além do desafio de capacitação das pessoas para o mercado de trabalho, temos enfrentado o desafio de convivência interpessoal, em um momento de polarização.
Senna - Exatamente. Não é apenas uma agenda produtiva. As empresas sabem muito bem a falta que essas habilidades fazem, porque como dizem os RHs das empresas, os funcionários são contratados por suas competências cognitivas e técnicas, mas demitidos pela falta das competências socioemocionais, pelo comportamento.
Cada vez mais o setor produtivo valoriza mais "skills" (habilidades) socioemocionais - trabalhar em time, ser colaborador, inovador, ter capacidade de ouvir um ponto de vista diferente - do que as cognitivas, que são commodities. E isso realmente não está restrito ao mercado de trabalho.
A intolerância - religiosa, de gênero, política, étnica - mostra a falta de desenvolvimento dessas habilidades básicas de convivência. De estar com o outro, saber se colocar no lugar dele, ouvir diferentes pontos de vista
Isso não falta só no Brasil, mas no mundo. Porque a escola, como existe hoje no mundo inteiro, foi criada no final do século 18, quando o que faltava era a distribuição de conhecimento, pensamento racional e habilidades cognitivas.
Os iluministas mostravam isso: o caminho para a verdade era a razão. E a escola foi criada sobre esse pilar. Foi um modelo muito bem-sucedido, e nós como humanidade distribuímos conhecimento e desenvolvemos essa função racional. Mas isso foi feito às custas do ensino socioemocional. Desenvolveu muito isso daqui (aponta ao cérebro) e nada isso aqui (aponta ao coração).
Agora vemos que isso tem um preço. Quando precisamos da outra parte (socioemocional), vimos que ela está subdesenvolvida.
Costumo dar um exemplo muito simples disso: o do grupo de jovens de Brasília de escolas de altíssimo nível que (em 1997) queimou o índio (Galdino Jesus dos Santos) vivo. Os jovens tiveram o melhor ensino disponível; não foi falta disto (cérebro), mas disto (coração). Faltou o mínimo de empatia, de estar no lugar do outro, senão você não queimaria outro ser vivo.
Você usa essas habilidades o tempo todo. Se você não as tem, é como tentar correr sem ter desenvolvido os músculos da perna. Você não vai correr.
É isso o que a escola precisa incluir como ensino intencional, planejado.
BBC News Brasil - Inserido dentro das disciplinas, não como uma disciplina específica?
Senna - Pode ser das duas formas: de maneira integrada às disciplinas convencionais ou em aulas escolares, mas não como uma teoria.
Não adianta "dar aula de respeito, de criatividade, de empatia". Essas habilidades você não ensina descrevendo-as, "você precisa desenvolver respeito pelo outro". É como falar ao músculo "você precisa se desenvolver". O que precisa é exercício: vivências e práticas, e não aula teórica.
BBC News Brasil - Sobre gastos em educação: o Brasil triplicou o gasto com estudantes da educação básica na última década, mas os resultados foram poucos ou não vieram. Por que ainda patinamos tanto?
Senna - Porque o problema - e há muitos outros números que provam isso - não é o tamanho do gasto, mas sim a eficiência do gasto.
É o que eu chamo de alavanca da gestão: a gente ainda não tem uma lógica, no setor público, de gestão eficiente. (...) Se você não tem clareza de metas, se não mede se está avançando na velocidade certa, é como pegar um Boeing para ir a Londres sem (saber) se você está indo para o lugar certo, na velocidade certa.
Por exemplo, 25 anos atrás, o grande sintoma da má qualidade da educação no Brasil eram os altíssimos índices de repetência e defasagem idade-série (crianças em séries atrasadas para sua idade). Entre 50% e 60% das crianças do país estavam defasadas em pelo menos dois anos. (...) Isso tem um custo: quando a criança repete, o Estado tem que pagar tudo de novo - professor, instalação, luz. A gente perdia dois terços das crianças do país entre a primeira e a oitava série do ensino fundamental. Elas repetiam, iam ficando para trás e largavam a escola, depois de muito fracassar.
Se fosse um hospital, é como se de cada 10 pacientes que entrassem, só três saíssem vivos. Era assim a situação emergencial (da educação). Um sistema que não funcionava para 70% de seus clientes
Atualmente, esse custo de repetência ainda é alto, em torno de R$ 14 bilhões. Se você gasta mal, não sobra (o dinheiro) para o que de fato importa (...), seja com equipamentos, computadores, até salários de professores.
BBC News Brasil - A valorização do professor é considerada crucial para a educação avançar. Na sua avaliação, então, a equação é melhorar a gestão para sobrar mais dinheiro para a valorização dessa carreira?
Senna - Esse é um aspecto, porque de fato o professor é uma alavanca central para resolver a educação do país. A evidência científica mostra que 70% da aprendizagem do aluno está ligada à qualidade do professor.
(Mas) ser bom professor não está relacionado a ter título de PhD, não está relacionado a anos de trabalho, e não é só salário.
Também há evidências que mostram que salário de professor não está ligado à qualidade (do ensino) do aluno, (derrubando) a tese de que basta aumentar salário para melhorar a educação. A Malásia fez essa experiência: dobrou o salário dos professores, mas não melhorou o resultado de aprendizagem e ainda ficou com um rombo fiscal. Porque atacou o problema só com uma alavanca.
Só aumentar salário não vai melhorar a educação, assim como só aumentar os gastos por aluno não trouxe melhores resultados de aprendizagem
BBC News Brasil - Usando sua analogia do Boeing, você acha que, na educação, a gente ainda navega no escuro, e insiste em práticas que não são baseadas em evidências concretas?
Senna - Esse é um dos principais problemas da educação no Brasil. A gente não leva em conta as evidências. Teorias e modas que surgem passam a tomar o lugar das evidências e passam a pautar a política pública. Obviamente isso não leva a resultados, assim como um tratamento médico de moda, como já surgiram algumas terapias sem evidência, não leva à cura do câncer.
As quatro alavancas para a gente virar esse quadro são a alfabetização (algo que a gente, em pleno século 21, ainda não fez), o professor, a gestão e fazer tudo isso com base em evidência.
BBC News Brasil - No que diz respeito a professor, a questão é melhorar a formação, tida como distante do chão da escola?
Senna - Sim, mas são várias coisas. A formação é extremamente teórica, conceitual, pouco afeita à sala de aula. É um grande desafio, assim como os estágios, que são para inglês ver. Deveria haver um modelo de residência pedagógica.
E a carreira de magistério deveria ser pautada por mérito. A promoção e o reconhecimento - financeiro ou de qualquer natureza - deveriam ser pautados no resultado, porque a única coisa que importa é se a criança está aprendendo, se está desenvolvendo suas competências.
Isso deveria ser a bússola na evolução de qualquer carreira no magistério - não é o tempo em serviço, não é o tanto de cursos que você fez. Se você fez tudo isso e o resultado continua ruim, então você fez o curso errado, gastou anos à toa, porque a única coisa que importava não foi conseguida.
Não adianta ter um monte de diplomas pendurados na parede do médico se todos os pacientes dele morrem. E a gente ainda não tem essa visão: quando fala em carreira (docente), fica pensando em salário, em título, mas isso não é o que importa.
BBC News Brasil - Temos o Plano Nacional de Educação, uma lei que foi discutida no Congresso por três anos com um conjunto de 20 metas para a educação até 2024 que dificilmente vão ser cumpridas. O que vamos fazer com isso?
Senna - É sempre aquela carta de boas intenções em que todos ficam felizes por ter feito o planejamento, mas como país ainda não somos bons em execução. (...) A Secretaria de Educação Básica, que é o coração do MEC, está agora fazendo um planejamento inédito com a Consed e a Undime (respectivamente, grupos de dirigentes da educação no âmbito dos Estados e dos municípios). Isso é muito incomum, em 25 anos não havia visto isso. E sem convergência de esforços, a gente não chega em lugar nenhum.
BBC News Brasil - O MEC também criou uma secretaria para a alfabetização, e em uma entrevista à revista Exame você disse que era esperado até mais do que isso. O que é esperado do MEC para resolver esse problema crucial da educação (considerando que um terço das crianças do país não é alfabetizada na idade certa)?
Senna - Na verdade, o que falei é que havia proposto que a alfabetização fosse o carro-chefe do governo Bolsonaro, assim como o Fome Zero foi o carro-chefe do governo Lula.
E você não estaria tratando - como é o caso do Fome Zero - da consequência, que é a miséria, mas da causa da desigualdade e da miséria, que é a falta de educação.
Por isso sugeri substituirmos o tratamento de sintomas pelo da causa, e o "analfabetismo zero" poderia ser uma grande bandeira para esse governo. Eu acho que eles capturaram essa ideia da importância de alfabetizar e criaram uma secretaria para dar esse status de importância para o tema. Mas a alfabetização, naturalmente, precisa ser tratada com todas as alavancas que mencionamos: evidências, eficiência, formação de professores. É um conjunto de estratégias para dar certo.
BBC News Brasil - E esse uso de evidências está sendo feito no MEC? Vê avanços nessa área?
Senna - Acho que existem técnicos dentro da secretaria de alfabetização que entendem de evidência. Houve uma confusão na comunicação que não ajudou: foi colocado como se um determinado método fosse o único que deveria ser adotado em todo o país (em referência à sinalização, pelo MEC, de que o método fônico de alfabetização seria privilegiado em detrimento de outros, gerando críticas), o que confundiu as coisas. Mas se você conversa com os técnicos, (vê que) não é o que está proposto nos documentos.
Acertar e errar faz parte de qualquer jogo. O importante é a gente identificar onde está acertando, onde está errando e ir para frente. Não podemos ficar reféns de erros e críticas o tempo todo, temos que olhar o que funciona e ajudar a dar certo. O fato é que as crianças dependem da gente para darem certo.
Costumo brincar que uma criança que tinha oito anos quando o Lula começou tinha 16 quando ele terminou. O que ela recebeu ou deixou de receber foi decisivo para a vida dela, porque com 16 anos dificilmente ela vai ter uma nova chance.
Nós precisamos ser eficientes. A vida da criança não volta nunca mais. E essa aprendizagem não é só cognitiva - a criança precisa de mais
BBC News Brasil - Você já contou que foi convidada três vezes para ser ministra da Educação. Existe alguma circunstância em que seria compelida a assumir esse cargo mais político?
Senna - (risos) Está difícil de me convencer.
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