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Por uma pedagogia do Chico (Buarque)

Guilherme Perez Cabral

23/05/2016 10h30Atualizada em 23/05/2016 14h11

É muito triste ver, no cenário tão irracional, cheio de raiva, que temos vivido, os ataques a pessoas tão importantes para a nossa curta e frágil história democrática. Por se oporem ao discurso fácil “antiesquerda”, ao defender a democracia, propondo uma discussão menos rasa, são execrados, rotulados de “petistas”, “comunistas” – seja lá o que isso signifique atualmente. O clima de perseguição a artistas e intelectuais não difere em nada do promovido pelo Senador MacCarthy, nos Estados Unidos dos 1950 (o chamado “macarthismo”).

Penso especificamente no nosso septuagenário Chico Buarque. Sim, ele, o artista cujas letras são tão didáticas para a compreensão e recusa da desordem social e patifaria política que tem ocorrido, em meio à caça às bruxas descabida. Para desconstruir isso tudo, cairia muito bem uma pedagogia do Chico. É história, é arte, é política e é absolutamente atual.

Às crianças, Saltimbanco: a “história de uma gata” de apartamento que se encanta com tantos gatos livres pela rua, cantando à luz da lua. A da “bicharia”, tratada como besta (é ainda), que se revolta, chia, vira fera quando o homem exagera, bota pra quebrar. Dez anos antes, Chico tinha cantado “A Banda” que, ao passar, por um instante, tirou cada qual do seu canto de dor, cantando coisas de amor.

Para a aula, tão urgente, sobre o estranhamento, o se colocar no lugar do outro, para, então, respeitá-lo, sem medo da “ideologia de gênero”, sem misoginia ou qualquer outra forma de preconceito, Chico pode ser mulher, e “Olhos nos olhos”, se dizer “refeita”, ao antigo amor, depois que tantas águas rolaram e outros homens lhe amaram.

“Construção” é texto fundamental nessa hora em que tudo parece fora do lugar. Quando, inaugurando uma participação política empobrecida, o público luta contra seus próprios interesses, defende o próprio carrasco. Quando a miséria continua naturalizada e ninguém está nem aí, aqui e acolá. Quando pegos de surpresa, passado o incômodo, ninguém mais liga para histórias tristes de Aylan (lembra dele?): “se acabou no chão feito um pacote tímido / Agonizou no meio do passeio náufrago / Morreu na contramão atrapalhando o público”.

Para não repetir a Ditadura Militar, a página mais infeliz da nossa história, já “desbotada na memória / Das nossas novas gerações”, Chico nos oferece muita coisa boa e inteligente. Tão inteligente que, passados mais de vinte anos, os fascistas “censores” ainda não entenderam nada. E repetem frases autoritárias, no Congresso Nacional (sim, eles continuam lá), infelizmente aplaudidas por jovens que não conhecem e velhos que esqueceram a história.

A sutileza de “Meu Caro Amigo” e as “novidades” (que podiam ser) contadas aos que fugiram de um Brasil que, no subterrâneo, torturava quem dizia “não”. O país em que, até hoje, “tão jogando futebol / Tem muito samba, muito choro e “rock'n'roll” / Uns dias chove, noutros dias bate sol”. O cale-se, “Cálice” de bebida amarga a ser engolida, que tanto se lutou para ver afastado e, que volta, com força (é, agora, slogan de Governo: cala a boca e trabalha!).

O fim melancólico de um partido que se propunha ser de esquerda deixa a gente desanimado, sem rumo. Perdemos uma grande chance, é verdade. O sofrimento não foi cobrado com juros. E parece que, nessa roda viva, voltamos para o mesmo lugar. Será que fomos ingênuos? Será que somos iguais aos adversários? Uma pedagogia do Chico pode ajudar nossos filhos e netos a encontrar o rumo certo.

Eu, que ouvia Chico na escola (o Vera Cruz, na cidade de São Paulo), acabei influenciado. Nesse momento, em que um comandante velho aparece, do nada, sem nenhum voto, como que descendo de um zepelim, eu fico – como Chico – com os caprichos de Geni, que “a deitar com homem tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre / Preferia amar com os bichos”. Acho que meus professores e colegas de turma também.