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Refugiados climáticos

Lucila Cano

20/12/2013 06h00

Sem palavras, um comercial produzido há alguns anos pela WWF (World Wild Fund) inquieta qualquer um. Falo do filme em que a porta da casa de um sujeito vai se estreitando dia após dia, até impedir a sua passagem definitiva. Em contraponto, surge a imagem final de um urso polar que tenta se equilibrar sobre uma minúscula placa de gelo no meio do oceano.

Em outubro deste ano uma notícia chamou a atenção pelo ineditismo: um habitante do arquipélago de Kiribati (Pacífico Sul) pediu refúgio climático à Nova Zelândia, porque a sua região é regularmente invadida pelas águas do mar, o que causa estragos à agricultura e afeta as reservas de água doce.

“Segundo a Comissão de Direitos Humanos da ONU, Kiribati faz parte das nações insulares - ao lado de Maldivas, Tuvalu e Tokelau - que poderão ficar ‘sem terra’ devido ao aquecimento global”, dizia a notícia.

Por ela, ficamos sabendo que o presidente de Kiribati considerou a possibilidade de remover a população para países vizinhos, como Fiji e Timor Leste, frente à ameaça de que mudanças climáticas possam acabar com o país. Mais ainda, o governo de Kiribati anunciou a compra de dois mil hectares em Fiji, que poderão servir de terras de cultivo para o seu povo.

Ficção?

Aqui do outro lado do planeta, nós, que nem conseguimos imaginar a localização de Kiribati no mapa, continuamos desperdiçando água doce, como se fossemos proprietários de fonte inesgotável. Ainda não paramos para pensar que também podemos ser vítimas da revolta da natureza e arcar com danos irreversíveis, seja pela seca ou pelo excesso de água, seja por outros desastres ambientais.

Em um exercício de ficção passível de se tornar realidade, imagine o leitor, a exemplo da população de Kiribati, hoje com 100 mil habitantes (segundo o que foi publicado), se populações de países afetados por “desastres climáticos” começarem a comprar pedaços de outros países mundo afora. Donos dessas fatias de terra, esses povos fundarão outros países, como uma espécie de avatar do que tinham? Que tipo de problemas poderão surgir de semelhante situação?

Se esses povos atingidos pela fúria da natureza não tiverem dinheiro para comprar outras terras, quem os acolherá? Eles deixarão de existir como povo, perderão sua identidade original e se tornarão filhos de outras pátrias, com outros costumes e outros idiomas, entre tantos outros questionamentos? E os nativos dos países procurados pelos refugiados “sem terra”? Serão eles acolhedores, fraternos, receptivos à criação de um novo mundo? É difícil dizer, mas a história mostra exemplos nada edificantes de como imigrantes e refugiados são tratados por países temerosos de uma nova ordem social.

Sem trégua

Em relatório lançado no final de maio de 2012, o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) falava em 43 milhões de refugiados no mundo e alertava para um aumento significativo deles nos dez anos vindouros por causa de conflitos, desastres naturais e mudanças climáticas.

No documento “A Situação dos Refugiados do Mundo: Na Busca por Solidariedade”, o Alto Comissário da ONU para Refugiados, António Guterres, declarou: “O mundo está gerando rapidamente mais deslocamentos do que soluções para o problema. Isto significa apenas uma coisa: mais pessoas vivendo muito tempo no exílio, impossibilitadas de voltar para casa e de se estabelecer em um lugar ou em outro. O deslocamento global é um problema internacional que exige soluções internacionais – e, com isso, quero dizer principalmente soluções políticas”.

Segundo o relatório, “já há mais deslocados por desastres naturais do que por conflitos armados, mas a lei internacional não reconhece como refugiado quem deixa um país para fugir de mudanças climáticas e desastres naturais”.

Refugiados climáticos sempre existiram. O que não existia era o uso frequente da expressão. Espero que na retrospectiva de 2014 ela não esteja entre as mais citadas do ano.

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.