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Antes de entrar na Uerj, aluna negra ouviu que não tinha 'cara de médica'

"Lembro que quando me perguntavam o que eu queria cursar e eu falava medicina, tinha gente que virava e falava: "ah, mas você quer isso mesmo? Você não tem cara de médica"", diz a estudante Mirna Moreira - Reprodução/Facebook
"Lembro que quando me perguntavam o que eu queria cursar e eu falava medicina, tinha gente que virava e falava: 'ah, mas você quer isso mesmo? Você não tem cara de médica'", diz a estudante Mirna Moreira Imagem: Reprodução/Facebook

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

11/07/2016 12h19Atualizada em 11/07/2016 17h31

O relato de uma jovem negra estudante de medicina na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) viralizou nas redes sociais, no último fim de semana, ao expor as condições sociais da jovem em contraste com o ambiente acadêmico.

No texto, a estudante Mirna Moreira, 22, falou também do preconceito enfrentado antes de ela entrar na universidade, onde cursa o segundo ano após ingressar pelo sistema de cotas. “Lembro que quando me perguntavam o que eu queria cursar e eu falava medicina, tinha gente que virava e falava: 'ah, mas você quer isso mesmo? Você não tem cara de médica'”, escreveu.

Moradora do Complexo do Lins, na zona norte do Rio, Mirna definiu que seu “maior acerto” foi ter assumido a estética de mulher negra, nos cabelos soltos. “Antes de entrar nesse espaço da universidade, eu entendi que é muito importante estar ali porque existe a questão da representatividade, que se estende para fora da academia também. Quando eu visto meu jaleco branco e subo o Morro dos Macacos representando a instituição Uerj, como fiz em uma ação sobre sexualidade na adolescência numa escola pública, e as meninas negras dessa escola pedem para tirar fotos comigo, elogiam meu cabelo crespo, e de alguma forma me veem como referência, eu só tenho mais certeza disso”, definiu.

“Por isso, principalmente nos espaços acadêmicos, eu faço questão de afirmar que sou do Complexo do Lins. Esse lugar faz parte da minha identidade. Sei da onde eu vim, quem me ajudou a chegar até aqui, e não foi nenhum médico de formação, foi minha mãe que trabalhou como diarista por muitos anos, meu pai que já trabalhou como pedreiro, e que sempre priorizaram meus estudos. Eu sei quem são os pretos que construíram a base para que hoje eu esteja aqui hoje", escreveu.

Jovem quer "devolver à sociedade" como médica do SUS

Em entrevista ao UOL, a jovem contou que já passou por situações nas quais ela vê um viés racista -- como a "surpresa" de alguns colegas quando, ano passado, ainda no primeiro bimestre de aulas, ela gabaritou em uma prova de anatomia prática.

"Apenas duas alunas gabaritaram: eu e uma colega, branca. Houve uma surpresa muito grande da sala somente em relação a mim, e com perguntas do tipo: 'Você escondeu o jogo?', já que era o primeiro mês, ainda, de aula. Mas a outra aluna passou pelo mesmo processo de seleção e não houve esse tipo de questionamento; não tenho dúvida de que foi racismo", atestou.

Mirna fez o ensino fundamental em escola pública, mas seguiu os estudos em escola particular graças à ajuda da madrinha, que vive nos Estados Unidos. "Já questionaram minha cota, já alegaram que eu tenho um tablet... como se eu não tivesse o direito de ter, me esforçando para isso".

A jovem milita na causa negra também em um coletivo da universidade. É ali o espaço, ela aponta, onde vários outros relatos semelhantes ao que ela diz ter ouvido são apresentados, mas de outros cursos. "Isso de 'não ter cara' de uma profissão' é quase unânime entre os negros da faculdade que estão nos cursos tradicionais".

Para o futuro, a aluna de medicina quer "devolver à sociedade" o que ela chama de investimento -- seja por projetos sociais ou pelo trabalho no SUS (Sistema Único de Saúde). "Eu tenho noção de que o meu estudo sai do bolso da sociedade", justificou.

Hoje, a mãe de Mirna é telefonista, e o pai, bombeiro. A filha integra um grupo de dez negros em uma sala de 104 alunos na medicina. 

Mais jovens negros nas universidades

Dados da SIS 2015 (Síntese de Indicadores Sociais), pesquisa produzida pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e divulgada em dezembro passado, mostraram que, em uma década, foi constatado crescimento na proporção de universitários na faixa etária de 18 a 24 anos --de 32,9%, em 2004, para 58,5%, em 2014--, com destaque para o recorte por cor ou raça, de acordo com os critérios de classificação do instituto.

Do total de estudantes pretos ou pardos de 18 a 24 anos, 45,5% estavam na universidade no ano passado. Há dez anos, essa proporção era de 16,7%. Entre os brancos, também houve aumento --de 47,2%, em 2004, para 71,4%, em 2014.

Também ano passado, outro estudo do IBGE revelou que os negros representavam apenas 17,4% da parcela mais rica do país, em 2014 – apesar de a população que se identifica como preta ou parda ter crescido entre a parcela 1% mais rica da população brasileira, cuja renda média é de R$ 11,6 mil por habitante.

Segundo o IBGE, os negros (pretos e pardos) eram a maioria da população brasileira em 2014, representando 53,6% da população. Os brasileiros que se declaravam brancos eram 45,5%.