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A vida "secreta" de quem avalia redações: como são treinados os corretores do Enem

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Ana Carla Bermúdez

Do UOL, em São Paulo

28/11/2017 04h00

A maratona de quem prestou o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), nos dias 5 e 12 de novembro, chegou ao fim. Mas é justamente agora que começa o trabalho de uma figura muito importante para o exame: os corretores de redação.

Para que as notas dos candidatos sejam divulgadas no próximo dia 19 de janeiro, os corretores devem avaliar cerca de 6,7 milhões de redações até lá. O tempo é curto e a rotina de trabalho promete ser exaustiva: segundo apurou o UOL, cada profissional corrige quase 100 textos por dia.

O trabalho desses corretores é cercado de sigilo. O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pela aplicação do Enem, não divulga os nomes dos profissionais, quantos eles são, quanto recebem nem qual o calendário que seguem. Eles também devem se manter no anonimato, conforme o contrato estabelecido.

Não é raro que professores de ensino médio e de cursinhos trabalhem como corretores para entender como funciona, por dentro, o esquema de avaliação das redações. O regulamento do processo de seleção desses avaliadores, no entanto, exige que eles não tenham nenhum vínculo com cursinhos preparatórios para vestibulares ou concursos públicos no mesmo ano em que trabalhem como corretores. Caso venha a ter, o profissional é desclassificado da seleção.

O processo de correção

Todo o processo de correção das redações do Enem é feito através de um sistema digitalizado. Inicialmente, os textos são corrigidos por dois professores, de forma independente, sem que um conheça a nota atribuída pelo outro. A pontuação da redação será a média aritmética entre as notas dadas pelos dois.

Existem horários pré-estabelecidos para o recebimento dos textos a serem corrigidos, e um novo “pacote” de textos só é enviado ao corretor quando ele já tiver concluído o anterior. Com isso, o sistema atua de forma inteligente, determinando a produtividade de cada corretor de acordo com o rendimento dele.

Se as notas atribuídas por esses dois corretores tiverem uma diferença maior do que 100 pontos na média final ou maior do que 80 pontos em qualquer uma das competências avaliadas, considera-se que houve discrepância entre as avaliações e o texto é automaticamente encaminhado a um terceiro corretor. Esse profissional geralmente pertence a uma categoria de corretores que têm um desempenho alto no sistema.

Nesse caso, a nota da redação será a média aritmética entre as duas notas que mais se aproximarem. Se, mesmo com a participação de um terceiro corretor, a discrepância entre essas notas permanecer, a redação é então encaminhada para uma banca presencial, composta por três professores mais experientes. Eles atribuirão a nota final da redação em conjunto.

Como é o treinamento

Bruna* é professora de redação e faz parte do time de avaliadores deste ano. Ela conta que decidiu trabalhar como corretora para conhecer melhor a forma como as redações são avaliadas e também pelo dinheiro, “que é razoável” – segundo ela, paga-se o valor de R$ 3 por texto corrigido, o que equivaleria a um total de R$ 2.100 por semana. Mas “rigoroso” e “minucioso” são duas das palavras que ela usa para descrever o treinamento pelo qual passou.

São diversas etapas de seleção, todas eliminatórias. A obrigatoriedade de diploma de graduação na área de letras/língua portuguesa ou linguística é considerada a primeira delas. Em seguida, os candidatos passam por uma capacitação a distância, dividida em 9 módulos, de duração de cerca de um mês. A carga horária total é de 90 horas.

“Tinha uma avaliação a cada 4 ou 5 dias. Quem não se organizasse bem, não dava conta e acabava eliminado”, explica Bruna.

Após essa etapa, é feita uma avaliação final, no formato de simulado, em que os candidatos devem corrigir cerca de 30 redações-modelo.

“A partir disso, somando com as notas das avaliações de cada um dos módulos, fizeram uma nota e uma classificação. Não sei quantas pessoas foram aprovadas, porque você só recebe um aviso dizendo se foi selecionado ou não”, diz Bruna.

Correção subjetiva? Nada disso

Todo esse treinamento, pontua a corretora, é feito destrinchando muito bem os critérios que devem ser avaliados em cada uma das 5 competências estabelecidas para a redação do Enem, que são:

  • 1: Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa.
  • 2: Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.
  • 3: Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.
  • 4: Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.
  • 5: Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

Após todo o treinamento online, ainda é realizada uma capacitação presencial, com duração de dois dias. Essa etapa é feita depois das provas do Enem, ou seja, quando a proposta de redação já é conhecida. Por isso, ela é considerada um “afinamento” dos critérios de correção especificamente para o tema em questão.

“[As pessoas] acham que a correção é muito relativa, que o corretor é parcial. Mas não, a grade é muito bem explicada e eles dão exemplos de limites de como é possível abordar o tema, o que pode considerado tangente ou não. O treinamento é feito para que não haja divergência [entre os corretores]”, explica Bruna.

Este foi o primeiro ano em que a banca de corretores foi selecionada pela Fundação Vunesp. Até 2016, a seleção era feita pelo Cebraspe (Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos), que teve o contrato rescindido pelo Inep. Em linhas gerais, no entanto, o treinamento permaneceu o mesmo. Carlos*, que foi corretor no ano passado, diz ter passado pelas mesmas etapas de capacitação que Bruna.

Ele reforça que não há como um corretor atuar por um suposto viés ideológico --acusação que passou a ser difundida na internet--, seja de direita ou de esquerda.

“E, inclusive, o corretor que durante o treinamento não conseguir encontrar uma coerência com a equipe é retirado do processo”, diz Carlos. “Qualquer corretor que escape do desvio padrão vai receber um alerta. Se persistir esse desvio, o sistema tem autonomia para eliminá-lo da correção”, explica.

*Os nomes dos entrevistados foram modificados por nomes fictícios.