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Devemos ler Adolf Hitler?

Guilherme Perez Cabral

14/03/2016 06h00

Decisão do Poder Judiciário carioca, no mês passado, proibiu a exposição e venda, naquele Estado, do livro “Mein Kampf” (“Minha Luta”), escrito pelo líder nazista Adolf Hitler. E trouxe à tona questões extremamente complexas, difíceis e necessárias: afinal, podemos ter acesso ao livro? Precisamos? Sob quais condições? Para quê?

Não é preciso lembrar, acompanham a “vida e obra” de Hitler, o extermínio de milhões de seres humanos, como nós, mas por eles, os nazistas, considerados “inferiores”: judeus, ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência, eslavos, socialistas, dentre outros.

Não posso falar com detalhes sobre o livro. Não o li. Apenas tive acesso a pequenos trechos merecedores das mais profundas críticas, pelas suas graves inconsistências, e dos maiores lamentos, pelo seu teor absurdamente desumano: a afirmação pseudocientífica da superioridade de uma “raça” humana, em detrimento das outras; a defesa indefensável da “purificação racial”, evitando o “rebaixamento”, pela mistura; a recusa a “sentimentos humanitários” pelos “inferiores”, do mesmo modo que “não há um gato com inclinação favorável a um rato”.

Sinceramente, o que está escrito no livro não surpreende tanto. Não foge muito das opiniões rasas e preconceituosas de pessoas com quem temos de conviver. Impressionante, quanta gente, ainda hoje, pensa assim. Só mudam os superiores e os inferiores, o “nós” e o “eles”, os indignos de humanidade.

Não há dúvida do cuidado que temos de ter com o uso criminoso das palavras de Hitler, promotoras do ódio, do não reconhecimento do outro. Negadoras da dignidade humana. A divulgação do texto deve, certamente, observar restrições.

Agora, proibir não me parece adequado. Soa um pouco nazista, queimar os exemplares existentes em praça pública. Descabido, também, escondê-los numa biblioteca secreta, em algum mosteiro medieval, como texto apócrifo e envenenado, como na obra de Umberto Eco.

Em “Educação Após Auschwitz”, Adorno ressalta que: “O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contato com a questão, rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tornasse o responsável, e não os verdadeiros culpados”. Semana passada, li um artigo em que o autor, nitidamente desconfortável ao falar de Hitler, preferiu se limitar às iniciais A.H.

Proibir-nos de ler o jurista Francisco Campos e sua defesa do autoritarismo, não protege a democracia. Sumir com os arquivos da ditadura, anistiando torturadores, não faz com que a tortura durante o Regime Militar deixe de ter existido. Aconteceu e deixou feridas profundas no nosso presente. Precisamos, por isso, para superar o passado, encará-lo, aprendendo com os erros e impedindo que aconteçam mais e mais vezes, em nosso “museu de grandes novidades”.

“Mein Kampf” tem sua importância nesse sentido. Nenhuma educação pode, simplesmente, ignorar esta parte da história. Silenciar os horrores por que passamos.

Na Alemanha, depois de setenta anos, sairá nova edição, com comentários críticos. A intenção é contextualizar a obra, revelar suas incoerências, enfrentar seu conteúdo de ódio. Acredito que é esse o caminho.

Preocupa, é claro, se estamos preparados para a leitura crítica. Mas a maturidade não virá se ignorarmos o texto e sua história. Há riscos, claro. A liberdade é arriscada. Em meio a tanta insatisfação social, tanto problema, tanta falta de educação, pode acontecer de algum idiota entender tudo errado, gostar e repetir. Na democracia, esse risco nós temos de assumir, fazendo nossa parte para a educação dos idiotas.