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Para o TJ de SP, pode fraudar vestibular e continuar estudando (ou: sobre nossa indignação seletiva)

Guilherme Perez Cabral

21/03/2016 06h00

Vejam a história. Um candidato a curso de medicina fraudou o processo seletivo do Programa Universidade Para Todos, o Prouni. Forjou que cumpria os requisitos previstos na Lei. Mentiu. Prestou informações falsas à universidade. E, assim, conseguiu se matricular, na condição de bolsista!

A classificação em processo seletivo é requisito para o ingresso na graduação. É o que prevê a Lei de Diretrizes e Bases. Ninguém pode entrar numa faculdade sem passar pela seleção, concorrendo em igualdade de condições com os outros candidatos.

No caso do Prouni, há uma seleção específica, na forma da Lei nº 11.096/2005. Direciona-se exclusivamente a candidatos em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Concorrem a uma vaga com bolsa de estudo. Não é um processo para concessão de bolsas a alunos já matriculados.

Na nossa história, o candidato mentiu. De forma totalmente desonesta, conseguiu vaga em curso de medicina, superconcorrido. Em detrimento dos demais. Felizmente, foi descoberto, quando ainda estava no começo do curso.

Vem, então, a pergunta: o que fazer nessa situação?

Retomando: a classificação em processo seletivo é requisito para o ingresso na graduação. O nosso candidato desonesto conseguiu isso, mediante fraude. Portanto, penso eu, o ingresso é “nulo”, nos termos da lei. Não gera nenhum efeito. Tem de ser cancelado. Foi o que fez a universidade: não cancelou somente a bolsa de estudo. Cancelou, também, a matrícula irregular.

Certo? Não.

Não é assim que pensa o Tribunal de Justiça de São Paulo. Em recente decisão, tratando exatamente desse caso, entendeu, por maioria de votos, que a conduta ilegal e imoral do candidato não prejudica sua matrícula. Embora só tenha conseguido sua vaga em medicina porque mentiu, a matrícula e os estudos, para o TJ, são válidos! A única sanção aplicável seria a perda da bolsa.

O Tribunal determinou lá trás, em decisão “liminar”, que o estudante deveria continuar estudando. E demorou mais de cinco anos para chegar a uma conclusão sobre a matéria. E que conclusão: premiou a desonestidade, a corrupção.

Nosso candidato desonesto, que frauda vestibular, hoje é médico. Está por aí, legitimado pela “Justiça” paulista, para cuidar de nossa saúde.

A indignação seletiva contra a corrupção passou longe daqui. O Poder Judiciário está nos dizendo que, apesar da lei (a lei, ora a lei), vale a pena, sim, ser desonesto e mentiroso. Quanta empatia é necessária para justificar tamanha complacência.

Nos dá algum alento o “voto vencido” do Desembargador Torres de Carvalho. Fala, inclusive, do lado ético que não pode ser esquecido: “O aluno que começa o curso mediante fraude não dá boa coisa e causa dúvida sobre o comportamento profissional posterior, mais relevante a especialidade escolhida (medicina). Mantê-lo estudando premia a fraude, incentiva comportamento semelhante e dá sinal pedagógico negativo; e os jornais descrevem diariamente aonde chegou a falta de ética de parte de nossa população”.

Vivemos tempos confusos. O entendimento está bastante comprometido. Tateamos sem saber, muito bem, para onde ir, onde pisar, onde apoiar. Uma coisa, porém, destacava Saramago, se torna cada vez mais clara: que a ética deve dominar a razão.