Os 'desclassificados' partidários da democracia
Nesse momento de forte polarização política e pouca profundidade na compreensão dos eventos, o diálogo está bastante comprometido. Dizer-se neutro é uma grande bobagem. Cabe aos “desclassificados” (neles me incluo) uma tarefa importantíssima: a preservação do diálogo, tomando partido na defesa da democracia.
“Desclassificados” porque não aceitam nem são aceitos por nenhum dos dois times em campo. Nem pelas duas torcidas apaixonadas, muito receptivas às críticas aos adversários, mas nada amigáveis às dirigidas a suas verdades e seus ídolos, ‘moros’ e ‘lulas’. Não importa a razão.
“Desclassificados” porque não se encaixam nessa leitura reduzida da realidade, com apenas duas opções, bem ou mal, nós ou eles, ‘coxinhas’ ou ‘petralhas’, golpistas ou corruptos. Quando bradam contra o golpe, são chamados de corruptos. Quando denunciam a corrupção, são rotulados de golpistas. Porque contra a corrupção e o golpe, não passam de corruptos golpistas! Não se sentem à vontade em nenhuma das duas manifestações.
A cada dia, mais denúncias cirurgicamente recortadas do contexto, para dar impacto, publicadas em jornais partidários de um ou de outro time, mais de um do que do outro. Não são lidas até o fim. Apenas sentidas como um gol, uma sensação fundida de felicidade e ódio, um gozo, a liberação de impulsos libidinais selvagens e perversos. São comemoradas aos gritos, seguidos de xingamentos e agressividade: “ladrão”, “safado”, “vagabunda”, “cheirador”. Isso não combina com o abraço que, noutras ocasiões, os autores já nos dedicaram.
Não aprendemos muito com o século 20, a “Era dos Extremos” de Hobsbawn. Foi um período de muitos “desclassificados”, perseguidos e mortos, em caças às bruxas (como as que vemos agora), por não se encaixarem em nenhum dos lados admitidos: o totalitarismo do mercado capitalista ou o do Estado stalinista.
Um desses “desclassificados” é Jürgen Habermas, hoje com seus quase 90 anos. Para a direita, um vermelho subversivo. Para a esquerda, um burguês ingênuo. Muitos dos que criticam jamais aprofundaram a leitura de um texto seu.
Habermas nos propõe o diálogo. Sempre. Pois é o lugar da aprendizagem, o lugar, portanto, da razão. Nele, fundamentamos nossa opinião, somos criticados, percebemos nossos erros, mostramos os alheios, construímos conhecimento, crescemos, nos entendemos. Mesmo quem quer nos convencer da impossibilidade do diálogo, faz isso conversando. Sempre que falamos estamos supondo que, apesar de tudo, ainda é possível conversar.
Pois se não fosse assim, teríamos ficado quietos.
Sejamos, então, nessa briga de torcida pobre e apaixonada, “desclassificados” como Habermas. Adotemos, então, o papel “docente” de preservar o diálogo, para preservar a democracia. Façamos isso, como professores e alunos, em sala de aula, mas também nos ambientes privados, em conversas com pessoas próximas, e nos espaços públicos, nas redes sociais.
O diálogo ainda é plenamente viável. Um E.T pousando, hoje, no Brasil, estranharia. Pois, se todos são contra a corrupção e contra o golpe, porque, afinal, estão brigando tanto? Em alguma medida, concordamos. Partamos, então, desses consensos mínimos possíveis, respeitando, em qualquer hipótese, as regras do jogo democrático (a Constituição, as leis). Sem xingar. Sem gritar.
O diálogo nos permite desmascarar os mal-intencionados, os verdadeiros corruptos e golpistas “tão legais fora da lei”. Pois eles não resistem a uma conversa. Permite a desconstrução dos ídolos, “manipuladores olímpicos do poder”, dizia Raymundo Faoro. Permite a desconstrução da fé em verdades mentirosas (sempre preferi as mentiras sinceras).
Se não for pelo diálogo e pelo entendimento, só nos restará a linguagem da violência. Vamos nos abrir ao diálogo e promovê-lo. Aceitar críticas, fundamentar nossos pontos de vista, mostrar ao outro o quanto se afasta da conversa. E guardemos os impulsos libidinais para satisfações mais prazerosas. O mundo é muito complexo para ficar assim, fechado, reduzido, impregnado de ódio, dividido em dois.
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