Terra de pseudodoutores
“Doutor” é um título acadêmico atribuído a quem concluiu o doutorado, modalidade de curso de pós-graduação. Isso exige muito estudo, muita dedicação, incluindo a defesa de uma tese, resultado de um trabalho de pesquisa. Uma pesquisa com real e original contribuição para determinada área do conhecimento.
São pouquíssimos os doutores de verdade no Brasil. Não chegam a 150 mil, segundo dados oficiais.
Mas estamos falando de um país complexo, nada fácil de entender e de explicar. Por aqui, a gente acha bonito ser chamado de doutor, mesmo sem sê-lo. O emprego é deturpado, acompanhado de formalidades e ritos para esconder a nossa total falta de conteúdo.
Indica um anacrônico status de “nobreza”. É título nobiliárquico. Serve para se distinguir da plebe rude. Na agudeza de Darcy Ribeiro: desses descendentes daqueles negros, índios e mestiços que ousam pensar que este país é uma república.
Distinguir-se pelo doutor (e perguntar “você sabe com quem está falando?”) é uma defesa fajuta – mas que tem dado bons resultados – contra o princípio da igualdade. Princípio que, embora afirmado na Constituição, ainda incomoda demais aqueles que sempre experimentaram como privilégios os direitos que deveriam ser de todos.
O pior é que mesmo o sujeito marginalizado quer ser doutor para se distinguir e, quiçá, excluir o próximo, como o excluíram outros doutores de araque.
Advogados, com seus ternos e gravatas, no calor de 30 graus, exigem ser chamados de “doutor”. Invocam, de modo forçado, a tal Lei de 11 de Agosto de 1827, da Majestade Imperial, o “Defensor Perpétuo do Brasil”, Dom Pedro I. Criou nossos primeiros cursos de direito, um em São Paulo, outro em Olinda, prevendo, ainda, como merecedor do grau de “Doutor”, o graduado que, depois da formatura, se submetesse à defesa pública de “várias teses entre as matérias que aprendeu”.
Médicos e profissionais da saúde em geral também gostam do título, após a graduação. Bordam o “Dr.” antes do nome, na altura do peito, na roupa branca. O docente vaidoso não abre mão: “Prof. Dr.”. Se não for doutor, indica que é mestre. Nem mestre? Põe especialista, pelo menos. O importante é se distinguir. Juiz, com sua toga, não se contenta com tão pouco. Só recebe advogado engravatado e quer mais: o respeito a sua altivez demanda o tratamento por “Excelência”.
Claro, na reverência ao “doutor”, vem junto o “senhor”. Ele mesmo, o senhor feudal, o dono de terras e de gente, com seus vassalos e servos. Demonstramos respeito às pessoas nos valendo de termo que indica ser ela proprietária, uma nobre proprietária. No fim das contas, o simples endereçamento de petição ao Magistrado, o “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito...”, não cabe numa linha só.
Quanta bobagem. Na degradação do “ser”, referida por G. Debord, ele se dissolveu em “ter”: só é alguém quem tem (e pode comprar) alguma coisa. Contudo, nesta terra pobre, em que poucos têm, contentamo-nos com o “parecer” ter. O arrogante nobre senhor doutor, com seu terno e gravata, jaleco ou toga, mas sem doutorado, diz muito sobre nossa pobreza, em todos os aspectos.
Melhor seria chamar todo mundo pelo nome (na linguagem do direito, se diz “prenome”), o sinal que nos individualiza na multidão. Se precisar, acrescenta o sobrenome. Se tiver um, vale também o apelido ou “nome social”. Mas, por favor, sem essa besteira de tratar os outros por doutor.
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