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As baratas e vespas-joia sem partido

"Eu gostaria muito de continuar defendendo meu ponto de vista de barata. Quero poder espernear. E agitar: "baratas de todos os países, despertemos desse entorpecimento!"" - Reprodução
"Eu gostaria muito de continuar defendendo meu ponto de vista de barata. Quero poder espernear. E agitar: 'baratas de todos os países, despertemos desse entorpecimento!'" Imagem: Reprodução
Guilherme Perez Cabral

25/07/2016 06h00

A natureza não segue a razão nem regras morais. Ela é neutra. Não toma partido de ninguém.

Lá vive a vespa-joia, um parasita para cuja “prosperidade” se vale de um expediente interessante. Seu hospedeiro é a barata, bem maior que ela. A vespa a aferroa no cérebro, lançando veneno que a imobiliza para sempre. Mas não a mata para comê-la. Não é esse o propósito. O hospedeiro tem que permanecer vivo, para servir de banquete à futura prole de vespinhas. Os ovos das vespas-joias são postos na barata. As larvas nascem e comem o bicho todo, ainda vivo e paralisado, aos poucos.

Cruel? Imoral? Desumano? Não. Apenas a natureza, neutra, sem partido e sem escolhas. Não cabe, aqui, questionar a “injustiça” dessa relação parasitária, nem refletir sobre um futuro mais digno às baratas hospedeiras. Na natureza, as vespas-joias não são opressoras, nem as baratas oprimidas.

Quanto a nós, seres humanos, diferentemente das baratas e vespas-joias, temos, além de instinto, alguma razão e senso moral. E temos opções. Pensando, tomando partido e escolhendo uma dentre tantas possibilidades, construímos e destruímos nosso mundo, de acordo com o que achamos melhor. Não há nada de natural ou neutro aqui.

Analisando, então, a sociedade em que vivemos, o que fizemos e deixamos de fazer, uns, mais críticos, querem mudá-la. Outros, satisfeitos, preferem que tudo fique como está. Eis um traço nosso: nunca concordamos em tudo. Olhando para a mesma coisa, uns acham certo, outros errado. Tem também quem não acha nada.

Tem gente (eu, por exemplo) que, quando olha para o que construímos, até hoje, com tanta a “ciência” e “progresso”, não enxerga mais do que um mundo muito injusto, dividido entre um monte de baratas e algumas vespas-joia.

Baratas que, com o cérebro envenenado e sem se dar conta de sua situação, sobrevivem entorpecidas dando o que tem para a fartura de poucas vespas-joias. Vespas-joias que não se veem como parasitas. Orgulham-se de si e se indignam com a vagabundagem dessas baratas que, “paradonas” lá, ficam mamando nas tetas da mãe natureza e não se esforçam o suficiente para se tornarem vespas-joias. Só têm direitos! Parasitas! Abaixo a CLT blatídea!

Muitos, porém, vão achar essa história de que homem é barata ou vespa-joia uma grande bobagem. Outros concordarão que é isso mesmo e tem de ser assim, a meritocracia na sociedade de insetos monstruosos.

Essa pluralidade de pontos de vista sobre nossa condição é fundamental. A partir dela, podemos andar para frente. Abrindo-nos a outras visões, conversando e estudando quem pensou sobre o assunto antes de nós, formando e revendo nossas verdades, escolhendo entre as alternativas que se descortinam.

E isso, sem impor uma visão como correta. Naturalmente correta. Neutra e sem partido. Andamos para trás quando tentamos predeterminar a forma única de pensar, silenciando sobre as outras.

Ter boas razões para acreditar que nos dividimos entre baratas e vespas-joias não torna meu pensamento certo, neutro e sem partido. Gostar de ser barata ou vespa-joia não faz disso a ordem natural das coisas. Nada que diga respeito a nós é natural, neutro ou sem partido.

Que todos, enfim, continuem tomando partido (ainda que seja o partido dos sem partido). Eu gostaria muito de continuar defendendo meu ponto de vista de barata. Quero poder espernear. E agitar: “baratas de todos os países, despertemos desse entorpecimento!”. Porque, se, de fato, é tormentoso se perceber um dia, ao acordar, um gigantesco inseto – como Gregor Samsa, de Kafka –, pior é passar a vida inteira sendo uma barata hospedeira, sem se dar conta.