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A democracia e seus dois maridos

Guilherme Perez Cabral

24/10/2016 06h00

Ouvindo o que se tem dito sobre política, assistindo aos telejornais, lendo notícia, uma após a outra, e depois, com o dedo, empurrando-as (para onde?) da tela do celular, abro-me às ideias de Luis Alberto Warat. Nos idos de 1980, disse que a democracia não pode ser uma coisa tão incolor, sem graça, como então sonhava Tancredo Neves (o presidente não eleito pelo voto popular, como o de hoje, e do mesmo partido do que preside hoje). E concluiu: “que velha me parece a nova república!”.

Warat foge do que é ordinário, previsível, imóvel, conformado, homogêneo, burocrático, devido. Foge dessas pessoas moribundas, aos montes por aí, cheias de ideias fixas, pessoas que não mudam, que passam a vida inteira dizendo a mesma coisa. Apela à literatura, à fantasia, ao amor, ao erotismo, para ler e fecundar a democracia, a política e o direito.

No seu livro “A ciência jurídica e seus dois maridos” (1985), contrapõe duas visões de mundo, partindo do romance de Jorge Amado e dos personagens Dona Flor e seus maridos, Teodoro e Vadinho.

No “mundo de Dona Flor”, distingue, de um lado, o olhar do Teodoro, o marido -- que, embora vivo, está mais morto do que o outro, falecido. Teodoro é insosso, tedioso, meticuloso, o homem que nunca sai de suas gravatas, que “pede permissão e hora para amar”. É olhar sem vida, estéril, sobre a vida que se perde a oportunidade de viver, perdido num emaranhado de burocracias, repressões, controles e deveres.

De outro, o olhar de Vadinho, o marido que mesmo morto, ainda vive no universo de Dona Flor. É o olhar que se abre ao diálogo, ao diferente, ao plural, ao conflituoso. O olhar alegre, vivo, intenso, cheio de erotismo e afeto, de quem se recusa a morrer, diante de Teodoros. É o olhar da autonomia, da resistência, da liberdade. O olhar de quem pode se despir perante os outros, sem o ritual de apagar a luz, para interagir, para fazer nascer o novo, permanentemente.

Se o olhar de Teodoro é o do “dia útil”, cheio de controles inúteis, de tédio ritualista, o olhar de Vadinho é carnavalesco, questionador, subversivo. Resiste à proliferação das obrigações e proibições, à invasão cancerosa do conservadorismo, do determinismo e do moralismo sem partido.

O mundo, sem dúvida, não pode ser todo Vadinho. Mas não pode também ser só Teodoro. No universo de Dona Flor, cabem os dois. Dona Flor, diz Warat, é a nossa heroína da ambivalência e da poligamia. Nela tudo é ambíguo e misturado. Pode, então, viver livre, responsável e prazerosamente.

Que bom seria se conseguíssemos, como Dona Flor, conviver, guardando no nosso olhar aspectos suficientes de cada um de seus maridos: “vadinhando”, o tempo todo, as regras que “teodoramente” nos impomos.

Dona Flor personifica a democracia com cores, que Warat não via em 1985 e que nós, mais de 30 anos depois, ainda não vemos. Personifica-a porque no seu mundo há o Vadinho, que, no nosso, sempre acaba silenciado por Teodoros.

Warat faleceu em 2010, mas está mais vivo do que os Micheis -- ops, desculpe, Teodoros -- que governam nosso país. Com sua vivacidade, sua fantasia, sua crítica prenhe, nos anima a “vadinhar”, mais e mais, a nossa situação política estéril e moribunda.

Nos anima, apesar de tudo, a loucas cavalgadas, delírios febris e mágicos orgasmos democráticos, só possíveis entre Flores e Vadinhos. Nos aconselha (sem obrigar, proibir nem golpear), a fugir desse casamento político imposto, arrumado, burocratizado, cronometrado, sem amor e cheio de trejeitos, entre vírgulas e mesóclises, que “nos obriga a fazer amor com um cadáver”.