Topo

O que você vai (deixar de) ser quando crescer?

Guilherme Perez Cabral

07/11/2016 06h00

O mundo dos adultos despreza a vivência da criança e a convivência com ela. Não pode, por isso, ser mais do que o mais do mesmo que temos visto. No máximo, teoria sem prática. Cheio de pressa, incoerências e violências, contadas noutros termos para os pequenos. Envergonhados, mentimos sobre nossas verdades, para ocultá-las de nós mesmos.

Tenho um amigo muito querido, o Thiago (chamam-no pelo sobrenome, Varella). Ele é adulto, mas é meio criança. As crianças, aliás, o adoram. Está sempre colorido, como um personagem de desenho: camiseta verde, bermuda laranja, óculos pretos, tênis vermelho. E está sempre, como faz a criança, quebrando nosso raciocínio de adulto, falho, repetido, engessado e apressado.

Comentou comigo, dia desses, de um lugar que, para a reunião de adultos, impede crianças de entrar. Não está adaptado para recebê-las, disse o dono. O caso virou notícia e deu margem para muita discussão. Para mim, o que mais chamou atenção foi o fato de concretizar o nosso mundo de adulto: um empreendimento que não deixa a criança entrar.

Chamar a fase da vida em que somos criança de “infância” diz muito sobre nós. Infante é aquele que não fala. Não fala porque não sabe falar. No nosso caso, também porque, mesmo que já saiba falar, sua fala não tem nenhum valor. Não é reconhecida.

Nossa infância é vista como uma mera etapa de preparação para a vida adulta. Diz Dewey, as crianças aprendem, na escola, coisas que, da perspectiva dos adultos, serão “úteis” no futuro. Suas próprias vivência “infantis” não são levadas em conta. A lição é repetir e guardar, para o futuro adulto algum dia usar.

Depois de uma vida de criança que não fala ou não pode falar, de repente viramos adultos. Esperamos o momento em que não temos mais nada a dizer, só sabemos repetir (a vida adulta) para nos autorizarmos a falar alguma coisa. Nos tornamos adultos mudos. Infantis, portanto.

Não estou sugerindo deixar a criançada solta por aí falando tudo o que der na cabeça e esperar que, do nada, sem aprendizagem nenhuma, nasça o novo homem e o novo mundo. Trata-se apenas de rever o espaço que temos dado às crianças, as que matamos em nós e aquelas permanecem vivas, em extinção.

Correr menos, dar menos atenção aos lucros e prejuízos da empobrecida e devida existência adulta e ter mais tempo para dotar de fala e de valor o espontâneo, o indevido, o inoportuno, o ilógico, que marcam a presença de uma criança. Tudo para que, deixando a criança entrar, descubramos a adormecida capacidade de falar (e ver) coisas diferentes do que temos repetido.

Temos muito a aprender, deixando a criança entrar e falar. Parar um pouco e sentar com uma criança para desenhar é compreender que as coisas mais importantes devem ter mais espaço: as pessoas, os bichos, tudo aquilo que a criança estima fica muito maior e mais colorido em seu desenho. Brincar com uma criança de peças de montar nos permite romper com a obsessão adulta de ordem, conformidade e simetria. Conversar com a criança, sobre qualquer tema, é responder a “porquês” que revelam a fragilidade de nossas verdades mentirosas.

Se isso resolve todos os nossos problemas, não sabemos. Possibilita, pelo menos, um mundo mais colorido, com mais Varellas que falam e brincam com criança e que, falando e brincando, quebram a linha falha de raciocínio do adulto. Um mundo com mais adultos (meio crianças) que não foram silenciados para sempre esperando o momento oportuno de falar.