Lições da infância
“Tia, o que é restauro?”; “No tempo de Jesus tinha funk?”; “Confessionário, o que é isso?”. Essas foram algumas das perguntas seguidas, uma atropelando a outra, que ouvi de pequenas gêmeas em visita a uma igreja no interior de São Paulo.
Entramos no templo praticamente vazio no início da tarde de um dia útil. Nas ruas de comércio do entorno, muitas pessoas se dedicavam às compras de presentes para o Natal. Outras, ainda em horário de almoço, entravam ou saiam das lanchonetes e restaurantes. Conversavam animadas, parecendo alimentar a perspectiva de alguns dias de festa e folga.
Não conhecia a igreja por dentro. Fui atraída pela recomendação de um amigo. Entusiasmado, ele me contou do valor histórico e artístico do monumento – o melhor exemplo do barroco paulista, segundo ele – que passa por minucioso trabalho de restauro.
A porta lateral estava aberta. Não poderia perder a oportunidade da visita. Alertadas a não falar alto no recinto, as gêmeas foram obedientes. Mas não pararam de falar, ou melhor, sussurrar. As perguntas vinham da esquerda e da direita, porque seguravam minhas mãos, ora me puxando de um lado, ora do outro. Uma delas ficou surpresa quando levantou os olhos e viu um magnífico órgão tomando quase que todo o espaço do balcão central. Queria subir, ver de perto o instrumento das músicas de casamento. A outra, mais romântica, me contou que só tinha assistido a um casamento na vida e quis caminhar, em passos vagarosos, pelo tapete vermelho.
Alheios às pessoas que entravam para rezar, ou a outras, como nós, que queríamos ver o trabalho deles de perto, os restauradores estavam concentrados na sua lida. Paramos perto de uma jovem, para admirar o que fazia. Pensei em aproveitar o momento para explicar o que era restauro de modo prático. A moça bem que podia me ajudar, mas ela sequer nos olhou. Será que estávamos atrapalhando a concentração dela? Provavelmente.
Fiquei emocionada com a restauração. Assim que o trabalho estiver concluído, aquele ambiente comoverá ainda mais todos os que por ali passarem, seja para rezar, seja para louvar a inspiração divina que dá aos homens a capacidade de criar maravilhas.
Do lado de fora, eu não sabia, é possível admirar o relógio que ornamenta a torre: um Cartier, contou meu amigo ao telefone. Logo, lembrei de Santos Dumont e do famoso relógio de pulso que o joalheiro francês produziu para ele. Arte, história, religião, tantas informações sendo requisitadas ao mesmo tempo, que mal tentava responder a uma pergunta, lá vinha outra.
Já na rua, os sussurros deram lugar à fala normal, um tom acima do desejado. Fazer o quê? Crianças são crianças. “Tia, você ainda não explicou o que é confessionário e por que as pessoas têm que confessar”, cobrou uma das meninas.
Acho que me sai razoavelmente bem na resposta, embora ela tenha suscitado mais perguntas: Quando a gente sabe que fez coisa errada e precisa confessar? Quanto tempo dura o perdão? Como é que o padre sabe se o pecado é grande ou pequeno? Ainda bem que logo chegamos à sorveteria e, fascinadas por tantas cores e sabores, as gêmeas me deram um tempo. Confesso que não me senti preparada para respostas a questões tão sérias.
O passeio estava chegando ao fim. Na despedida, com promessas de nos revermos em breve, ainda durante as férias, ganhei desenhos natalinos. Entre eles, um curioso quebra-cabeças de Natal, que uma das meninas desenhou em folhas do caderno escolar e cortou em quadrados quase que iguais. Um dos quadrados dizia: Merry XMas! The end! E ela me disse que aquele era o fim do quebra-cabeças. As gêmeas estudam inglês na escola e, pelo visto, estão aprendendo direitinho. Assim como o irmão menor, tiraram boas notas e passaram de ano. Os três estavam eufóricos com a proximidade do Natal, o aniversário de Jesus! E lá veio mais pergunta: “Tia, se o aniversário é de Jesus, por que a gente compra presente pros outros?”.
*Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna e avô das gêmeas.
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