Clarice Lispector (2) - Esperança e verdade
Márcia Lígia Guidin, Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
De volta ao Rio de Janeiro em 1960, Clarice Lispector sofreu um acidente, em 1967, que transformaria um pouco a sua vida: a escritora teve mãos e pernas queimadas num incêndio, provocado pelo cigarro que ficou aceso enquanto ela dormia. A mão direita, deformada e com cicatrizes, tolheu seus gestos e distorceu sua assinatura. Continuava, entretanto, a escrever seus textos à máquina, como sempre fizera. Deprimida, passou a recusar convites e homenagens, iniciando um recolhimento doméstico que duraria até o fim da vida.
Para manter-se, Clarice escreveu, até 1973, crônicas para o Jornal do Brasil (RJ). Sua coluna a tornaria mais conhecida de um grande público, que até então não estava habituado com seus textos. Ela já havia publicado nove obras entre romances e contos, porém era mais lida entre universitários. Era uma "escritora de elite", como se dizia. E, porque se relacionava pouco com intelectuais cariocas, passou a ser acusada de "escritora alienada, intimista"; ou seja, de não se envolver nas graves questões políticas que o Brasil vivia desde 1964. Timidamente, a escritora chegou a participar de passeatas de intelectuais e artistas contra a ditadura, em 1968. Seu constrangimento, porém, aparece pateticamente nos óculos escuros que usava na ocasião.
Diante dos mistérios existenciais
Nessa década, além dos contos de Laços de Família, até hoje seu livro de maior excelência na arte do conto, Clarice escreveu A paixão segundo G. H., um estranho romance que conta "apenas" a solidão da protagonista, a pintora G. H., diante do quarto vazio da ex-empregada e sua busca de identidade. Aliás, a pergunta "Quem sou eu?" frequenta toda a obra da escritora. Obra, aliás, que, centrada no universo feminino, vai parecer "feminista" - o que de fato não é. A autora sempre estará diante dos mistérios existenciais de suas personagens, e não diante das ideologias que a época exigia, quando se pedia às mulheres que "queimassem os sutiãs".
Nessa mesma época, Clarice se aventurou também pela literatura infantil, segundo ela, a pedido de um de seus filhos, com O mistério do coelhinho pensante (1967) e A mulher que matou os peixes (1969).
As acusações de escritora alienada não são inteiramente justas. Embora a maior parte de sua obra tenha mulheres - solteiras ou casadas, profissionais com carreira ou donas-de-casa - como protagonistas inquietas, Clarice deu clara importância aos despossuídos. É famoso um texto seu chamado "Mineirinho", publicado nos anos 1960, que começa assim:
"É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que seus crimes."
E - é claro -, não podemos deixar de pensar na maior de todas as suas protagonistas, que é a mais pobre, mais feia, mais tola e humilde de todas: Macabea, a alagoana de A hora da Estrela, cujo "olhar de perdição" Clarice afirmou (em entrevista) ter captado na rua.
Antes, porém, de chegar a esse seu magnífico romance-novela, Clarice escreveu, no final da década de 1960, um romance que fez sucesso (embora ela tenha dito que não gostava dele): Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), cujos diálogos diretos entre os amantes, um professor universitário e uma professora de crianças, são novidade em sua obra. Há nesse romance certa concessão aos seus leitores de crônicas, menos intelectualizados, apreciadores de best-sellers, aos quais agradava o cenário sedutor do Rio de Janeiro e o fato de o professor Ulisses "ser de esquerda".
Clarice passaria os últimos dez anos de sua vida bastante enclausurada. Escreve ainda alguns textos, dentre eles um livro de contos eróticos (A via-crúcis do corpo, de 1974), publica um conjunto de entrevistas que fez com artistas e celebridades e Água viva (1973), uma espécie de monólogo-carta. Já doente, de câncer, passa a escrever aos fragmentos, à mão, e sua amiga Olga Borelli toma o hábito de pôr em envelopes separados o que viria a ser A hora da estrela (1977), obra criada simultaneamente com outra, que ficaria póstuma, Um sopro de vida (1978).
A personagem mais humilde
A escritora cria em A hora da estrela uma personagem tão ignorante, triste, miserável e humilhada na cidade grande que seu narrador, dentro da obra, um certo Rodrigo S. M., sente piedade da própria personagem: "A pessoa de quem vou falar é tão tola que à vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham".
Macabea está destinada, pelo narrador e pela própria Clarice, sua criadora, a não conseguir nada na vida urbana do sul do país. Seu destino está traçado, mas diferente do que lhe promete a cartomante que ela visita: ao invés do amor, da beleza e da prosperidade, ela será atropelada ao atravessar a rua, no momento mais feliz de sua vida, momento esse em que deseja algo de bom. A frase de Clarice Lispector nesse momento é um das mais belas de sua literatura. Rodrigo S. M. diz:
"Macabea ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua, pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras. [...] Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero."
Macabea, a alagoana "de ovários murchos", a personagem mais humilde de Clarice, estava "grávida de futuro". Isso era ter violenta esperança na vida. E a escritora termina a obra de uma maneira sensata: mata sua personagem, pois seria muito injusto dar esperança a quem não poderá transformá-la em verdade. Alguns críticos, no entanto, dizem que Clarice traiu Macabea, fazendo o escritor Rodrigo matá-la na história.
Dizem que quando a escritora estava agonizante no hospital, em dezembro de 1977, ela disse ao médico que a acompanhava: - Doutor, o senhor matou meu personagem. Diferentemente da frase, hoje, os personagens de Clarice vivem nas nossas leituras.