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Machado de Assis - A obra do realista

Márcia Lígia Guidin, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

(Atualizado em 13/12/2013, às 18h26)

Nem sempre houve um Brás Cubas na vida de Machado de Assis. Um crítico muito respeitado, Augusto Meyer, se pergunta: o que terá acontecido a Machado de Assis para mudar tão radicalmente o modo de escrever? Que demônios tomaram conta dele, numa "conversão às avessas?".

A rigor ninguém sabe responder a essa questão. O fato é que antes de publicar "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), considerada a primeira obra realista no Brasil, Machado já era bastante conhecido no acanhado meio intelectual do Rio de Janeiro, pois já havia escrito outros quatro romances ("Ressurreição", 1872; "A Mão e a Luva", 1874; "Helena",1876; "Iaiá Garcia", 1878), algumas peças de teatro, vários livros de poesia (sua poesia não é boa) e dois livros de contos ("Contos Fluminenses", 1870; "Histórias da Meia-Noite",1873).

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Antes e depois

Os quatro romances anteriores a 1880 são normalmente chamados de "românticos". Não o são totalmente, dada a personalidade inquieta do autor, que não compartilhava com todas as ideias do romantismo; mas também ainda não são realistas nem tão provocadores - como tudo o que Machado veio a escrever depois de "Brás Cubas".

Nos quatro romances da primeira fase, Machado trata de temas que só depois vai aprofundar e desvendar: amor é para sempre? Pode-se casar por interesse? A vida social pode mudar as pessoas? Dizem os críticos, que o modo atrevido de ser de Brás Cubas nunca mais saiu dos ombros do autor.

Afinal, quem manda mais: o autor ou o personagem? Boa pergunta essa. Para estudarmos os personagens e as obras de qualquer autor não necessariamente precisamos saber muito da vida de seus criadores; afinal, obras literárias existem por si mesmas depois de escritas. Mas, no caso de Machado de Assis, as "Memórias Póstumas", de 1881 (escritas quando ele tinha 40 anos) funcionam como um divisor: antes escrevera obras que não afrontavam a literatura vigente; depois, criaria obras particularmente provocadoras, com aprofundamento moral e psicológico dos personagens, muita ironia e muitas revelações sobre a hipocrisia social e sobre a ética particular e oportunista.

Puro realismo brasileiro... nas mãos de um escritor culto, que lia em várias línguas, fazia críticas e escrevia crônicas em jornais.

O homem e sua obra

Uma coisa é necessário dizer: a supervalorização "fantasiosa" da biografia de Machado de Assis atrapalha o estudo de sua obra. Como era neto de escravos, mulato e pobre, há até hoje o desejo de transformá-lo num brilhante selfmade man, o que é impreciso. Há quem diga que ele subiu na vida, ficou pedante e nunca escreveu histórias de pobres como ele. Pura mentira! Machado escrevia incluindo ricos ou pobres para mostrar o que há de igual e obscuro dentro de todos nós.

Contos de Machado de Assis

Para comprovar a falta de preconceito, basta-nos ler alguns contos que se passam inteiramente entre as classes pobres. Depois de 1881, ele publicaria vários livros de contos, um deles chamado "Histórias Sem Data" (1884). Nesse livro estão muitos dos melhores contos do escritor (A Igreja do Diabo, Singular Ocorrência, Conto Alexandrino, A Senhora do Galvão, Primas de Sapucaia).

Imagine uma dessas histórias, que se chama Noite de Almirante: Genoveva, pobre, agregada, bordadeira se apaixona por um pobre marujo, Deolindo Venta-Grande, tímido, pobre, romântico... Decidem "dar uma cabeçada", ou seja, amigar-se; ele, porém, tem de viajar pelos mares afora a trabalho; ela fica na periferia bem pobre do Rio, com a promessa de que o esperará.

Quando ele voltar (e ele volta), terá uma noite inesquecível com sua amada, uma noite de almirante. Porém, ao voltar ele descobre que não só ela não o esperava à janela "bordando", como ele a imaginava, como já estava morando com outro namorado. Indignado, ele lhe cobra o juramento feito, e ela, com toda a naturalidade diz:

"Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade (...) Mas vieram outras coisas...Veio este moço e eu comecei a gostar dele."

Deolindo queria matá-la, depois retomava a esperança; conversaram, ele lhe deu presentes; ela agradeceu e... tudo ficou como estava. No final da história, não a matou nem se matou. Pior: sobreviveu, aprendeu que os juramentos não valem para sempre e mentiu aos amigos, sugerindo a eles que tivera uma noite inesquecível, uma noite de almirante.

Neste conto (como acontece em muitos outros), Machado consegue coisas surpreendentes: relativiza os juramentos, portanto relativiza a moral de pobres ou ricos; ironiza com o romantismo, pois Deolindo era um romântico tolo; e, ainda por cima, nos faz lembrar da grande história de todos os tempos, a de Ulisses, da "Odisseia", que volta para casa depois de vinte anos enquanto Penélope o esperava, tecendo uma manta. No conto, o mito do amor invencível desaparece, e nós rimos, com pena da ingenuidade de Deolindo: sua "Penélope" não só não o esperou como o trocou por outro rapidamente...

O autor e a escravidão
Há outros dados da biografia de Machado que interferem mal nas leituras de seus muitos textos. Por exemplo, o fato de ser mulato não o fez desprezar os negros como muitos dizem. Machado era abolicionista, embora isso não fique explícito em muitos romances. Para ter certeza dessa ideologia, é simples: só ler suas crônicas, o que quase ninguém faz.

Seu pai não era um negro pintor de paredes nem sua mãe era lavadeira, como se diz por aí. O pai era um artesão, a mãe dona de casa e, o que era raro na época, embora pobres, eram ambos alfabetizados e casados legalmente.

Outras barbaridades "biográficas"

Vez por outra aparece mais uma barbaridade 'biográfica" para explicar a obra. Nós já ouvimos dizer que Machado tem como um dos temas preferidos o adultério feminino (Há adultério masculino também, acredite) e teria escrito "Dom Casmurro" por obsessão ao tema, já que tivera um "caso" com a mulher de José de Alencar (escritor que ele tanto admirava, cujo filho, Mário, era seu amigo).

Que tolice! Machado de Assis explora, entre tantos outros temas, o do adultério porque explora em seu realismo, os perfis masculino e feminino em sociedade, seja ela a burguesia ou a proletária. E homens e mulheres amam, casam, mas também traem. Machado quer analisar, com suas histórias, como os seres escondem da sociedade ações por ela não aceitas. Como falar do casamento se não se falar de interesses, amores frágeis, mentiras ou verdades?

Antes de publicar o famoso romance "Dom Casmurro" (1899), Machado havia escrito "Quincas Borba" (1891), romance delicioso sobre os interesses, a ingenuidade e a loucura.

Quando escreveu "Dom Casmurro", Machado era muito famoso no Rio de Janeiro, muito respeitado pela maioria dos colegas, já havia fundado a Academia Brasileira de Letras em 1897, era seu presidente. Depois desse romance, ainda escreveria mais dois: "Esaú e Jacó" (1904) e "Memorial de Aires", publicado em 1908, mesmo ano em que morreria.