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Internos redescobrem a escola na Fundação Casa

Sala de aula na Fundação Casa. Os internos têm aulas com professores da rede estadual - Junior Lago/UOL
Sala de aula na Fundação Casa. Os internos têm aulas com professores da rede estadual Imagem: Junior Lago/UOL

Marcelle Souza

Do UOL, em São Paulo

20/10/2014 06h03

Trancada com um cadeado, a grossa porta de ferro esconde a sala de aula. Na Fundação Casa, o quadro negro fica ao lado das reforçadas grades amarelas da janela. A sala tem fileiras de carteiras feitas de plástico e de ferro – substitutas do modelo de madeira normalmente encontrado nas escolas.

Os garotos, a maioria pardos e negros, caminham em fila, vestem uniforme e têm o mesmo corte de cabelo. As respostas são sempre acompanhadas de “senhor” ou “senhora”. Estamos na unidade de internação Novo Tempo, em Franco da Rocha, cidade localizada na Grande São Paulo.

A sala de aula dentro da unidade reúne garotos que cometeram atos infracionais, mas, como todos os jovens, eles carregam também sonhos e dificuldades. Na internação, eles reencontram a escola, que na maioria das vezes foi abandonada pelo caminho por causa das drogas e dos delitos.

Só tiro 9 e 10

“Nunca imaginei que um dia podia ser o melhor aluno, jamais. Lá fora eu não me dedicava, senhora. Agora a matéria que eu mais gosto é matemática, só tiro 10 e 9, antes eu tirava 1 e 2”, diz Lucas*, 17, que está na 8ª série do ensino fundamental.

O caso de Jonas*, 18, também impressiona: "Eu não sabia escrever o meu nome sozinho", afirma o rapaz que estava há dois anos sem estudar. "Eu me sentia vergonhoso. Eu nunca imaginava que ia aprender." Atualmente, ele é um dos alunos mais esforçados da unidade.

Mario Volpi, coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Brasil, lamenta que a internação tenha sido a circunstância em que os adolescentes tenham se conciliado com a educação. "Há uma preferência pela internação, uma influência do sistema penal dos adultos, enquanto, na verdade, ele [o adolescente infrator] pode desenvolver atividades em grupo, com apoio de profissionais especializados, cumprindo medidas de liberdade ou semi-liberdade”, afirma.

“Quando o ato infracional acaba resultando na ida desse adolescente para a unidade de internação, a gente observa que muitas instituições falharam: a comunidade, a família, a escola. Elas perderam a capacidade de colocar limites e propor atividades de engajamento, de vinculação, de propor algo que faça sentido na vida dele”, complementa Volpi.

'Aqui, a professora explica'

O representante da Unicef afirma que as medidas com mais êxito estão relacionadas a estruturas que não necessitam da internação, mas dependem da articulação entre a escola, a comunidade e o sistema de atendimento socioeducativo. “O ideal é que a instituição não precise prender para ele descobrir suas habilidades”, diz Volpi.

A maior parte dos jovens chega à Fundação Casa com um histórico de notas baixas, reprovações e muito estão há anos sem frequentar a sala de aula. “O elogio faz muita diferença para eles, que chegam aqui com a autoestima muito baixa”, diz Claudia Roberta Honorato Leandro, coordenadora pedagógica da unidade Novo Tempo. Na unidade, a mudança é feita a partir de uma rotina rígida, de muita disciplina, da atenção dos professores e da dedicação dos alunos.

“Aqui eu estou aprendendo mais coisas. Se você não sabe, a professora explica pra você”, afirma Fernando*, de 15 anos, que está na 8ª série (atual 9º ano do ensino fundamental).  “Lá fora eu reprovava sempre por falta, porque estava usando drogas”.

“Acho mais difícil divisão e subtração, quando cheguei aqui não sabia. Eu escrevia muita coisa trocando ‘ç’ pelo ‘s’, mas agora estou melhorando. Antes eu nem fazia lição, senhora, ia para a escola só para ganhar presença”, afirma José*,18, que está na 5ª série do ensino fundamental. “Quero terminar os estudos e fazer um curso de técnico de peça de avião”, diz.

A coordenadora da Novo Tempo diz que os jovens chegam à Fundação Casa com muita dificuldade de leitura, redação e matemática. Um desafio para a equipe pedagógica. Em pequenas turmas, os internos também têm aulas de matemática na plataforma online Khan Academy. Os grupos são formados por jovens que têm interesse e veem na ferramenta uma possibilidade de desenvolver o gosto pela matemática ou solucionar dificuldades na disciplina.

Planos para o futuro

Junto à educação formal, ligada à rede estadual de educação, os adolescentes fazem cursos rápidos profissionalizantes, que alimentam sonhos de uma vida diferente a partir da educação. “No ano passado eu já fiz o Enem, esse ano vou fazer de novo. Quero estudar medicina”, diz Fabiano*,19, que está prestes a completar o ensino médio.

“Meu sonho é terminar os estudos e arrumar um serviço. Quero trabalhar com o meu pai, colocando piso e azulejo. É o que eu me dou bem”, conta Juliano*,18, que está na 5ª série e fez um curso na área dentro da Fundação Casa.

Com a privação da liberdade, redescobrem a escola e o poder das a palavras. “Eles gostam muito de livros de poesia, que usam para escrever cartas”, diz Gláucia Gonçalves Moreno, encarregada técnica na unidade Novo Tempo. Ela torce que as mudanças se estendam também para a rua, quando a liberdade vai questionar a real vontade de uma vida nova.

*Nomes fictícios