Voluntários escrevem cartas para migrantes em estações de trem em SP
A refugiada haitiana que deixou um país arrasado pelo terremoto e, entre caronas e caminhadas, percorreu a pé, por 16 dias, um sem número de cidades brasileiras; a dona de casa que mandou o filho para a missão religiosa e só vai vê-lo dentro de dois anos; o pai que não consegue dizer ao filho, olhos nos olhos, que o ama; o sujeito que não conseguiu assumir a sexualidade em uma cidade pequena e pouco aberta ao que foge do dito "convencional". Ou a mulher que abdicou da proximidade com os parentes para manter distância segura do companheiro –que a agredia.
São muitas as histórias de quem tentou a vida em uma cidade como São Paulo, mas deixou, pelo caminho, pequenos ou grandes retalhos que formam uma colcha espessa e complexa de memórias. Comum a todas elas ficou a saudade –palavra tão portuguesa e tão presente nas cartas que um grupo de voluntários, em estações de trem da capital paulista e da região metropolitana, escreve para aplacar um pouco do que aflige quem os procura.
O coletivo chama "Estopô Balaio" e leva artistas às estações da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), uma vez por semana, com placas e chamamentos verbais para quem quiser escrever uma carta. O grupo nasceu há cinco anos no jardim Romano, extremo leste de São Paulo, e divide entre si as despesas postais. Assim como a maior parte do público que os procura, vários dos integrantes do coletivo são migrantes nordestinos (especialmente do Rio Grande do Norte) que vieram à cidade em busca de melhores condições de trabalho.
Entre os autores das cartas estão não apenas migrantes do Norte e Nordeste em busca de trabalho, mas mulheres que deixaram situações de violência doméstica, homossexuais que fugiram das consequências de se expor a sexualidade em lugares pequenos e tradicionais e aqueles que sonham com a chance de pedir o que for possível, de uma vez só, em programas de televisão. A maior parte dos que buscam a ajuda dos voluntários ainda não é alfabetizado.
Para o coletivo, por outro lado, a tarefa o auxilia nas próprias criações –tanto que a ação que já passou pelas estações Poá, Ferraz de Vasconcelos e Brás faz parte do que chamam de “atelier de memórias e narrativas”. A proposta é desenvolver nos integrantes a escrita literária e a pesquisa de histórias, a partir de memórias, e, ao mesmo tempo, reconstruir ou construir vínculos para as comunidades, vizinhas ou não, das estações.
De acordo com a artista e jornalista Ramilla Souza, 29, em um ano e meio de oficina em estações, cerca de 300 cartas já foram escritas e enviadas. Antes da iniciativa, o grupo já havia feito três peças sobre o alagamento que, em dezembro de 2009, deixou o jardim Romano inundado com as águas do rio Tietê durante três meses.
“Fazemos uma pesquisa baseada em memória e narrativa ao colher as histórias das pessoas. Por aí tivemos, por exemplo, três espetáculos sobre os alagamentos no bairro onde nasceu o coletivo. Há um ano e meio começamos a testar o dispositivo das cartas --nem todos que nos procuram são analfabetos; algumas pessoas querem ajuda para escrever suas cartas. Tem gente que escreve para a esposa, os filhos, boa parte escreve para programas de TV para encontrar parente perdido, mas a grande maioria são migrantes nordestinos que perderam contato com parentes”, relatou. Em troca, os atores pedem que o emissor providencie ao menos um endereço para onde a carta possa ser enviada.
Haitiana escreveu ao pai anos depois de terremoto; boliviana queria ajudar o filho
Ramilla lembrou de alguns casos que ela considerou emblemáticos –e vindos migrantes também estrangeiros, sobretudo bolivianos e haitianos.
“Tempos atrás uma haitiana queria escrever para o pai e dizer que estava bem. Ela veio depois do terremoto de 2010 [em que mais de 300 mil pessoas morreram] e não o via desde então.
A migrante nos contou que andou a pé 16 dias pelo Brasil para evitar fronteiras e que estava juntando dinheiro para voltar para casa e havia sido acolhida por uma mulher que fazia perucas”
“Em outra carta, uma trabalhadora boliviana disse que o filho de 12 anos nunca tinha cortado o cabelo porque queria vender e ter dinheiro para construir um quarto. Mandamos a carta a um programa de TV e eles ajudaram a família”, completou a artista.
Também integrante do grupo e há dois anos em São Paulo, o ator potiguar Juão Nin, 27, se disse privilegiado pelo contato com realidades distintas da dele. “Fico imaginando que, se minha vida é difícil, imagina a de outras pessoas? É muito triste ver a quantidade de brasileiros, de nordestinos que estão em São Paulo e não sabem ler e escrever”, afirmou.
“Como artista e cidadão, isso me move e me faz querer fazer, dentro do meu contexto, uma pequena revolução."
"Amo muito você, filho"
O coletivo fica às quintas-feiras, das 10 às 13h, em uma estação de trem previamente definida. A reportagem o UOL acompanhou na semana passada a ação dos artistas na estação de Itaquaquecetuba, cidade da região metropolitana que faz divisa com o jardim Romano.
A dona de casa Maria Aparecida Barbosa, 43, aproveitou para pedir ao grupo que enviasse ao filho, missionário, uma carta de próprio punho. “Carta lembra um tempo bom em que a gente esperava o carteiro passar em casa”, relembra. Um morador da região que não se identificou escreveria a segunda carta do mês ao filho –que mora no mesmo bairro que ele, na cidade. “Amo muito você, filho, e estou trabalhando para dar uma vida melhor para sua mãe, que está doente”, ditou aos voluntários.
A trilha sonora da ação fica por conta do aposentado Vital de Carvalho Araújo, 74, mineiro de Mariana que mora na zona leste de são Paulo desde a década de 1960. Seo Vital, que se considera “parte mineiro, parte nordestino” contou que só foi alfabetizado depois de aposentado –quando, então, aprendeu a tocar o acordeão que hoje acompanha o coletivo artístico.
Nesta quinta, os voluntários voltam à estação em Itaquaquecetuba. No próximo dia 17, às 14h, eles estreiam uma peça sobre as histórias da região em que se instalaram. A apresentação começa dentro dos vagões de trem que partem da estação da Luz, no centro da capital, rumo ao jardim Romano –onde a ‘plateia’ desembarca para ter contato, nas palavras dos integrantes do “Estopô Balaio”, com as “consequências da urbanização desenfreada”. A peça dura quatro horas –quase nada, perto dos três meses de alagamento que não vão desimpregnar, tão cedo, da memória dos moradores do jardim Romano.
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