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Escola pública do centro de SP entra em projeto internacional da Unesco

Mural criado pela artista chilena Verónica Ytier na escola municipal de ensino fundamental Infante Dom Henrique, no Canindé, na região central de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL
Mural criado pela artista chilena Verónica Ytier na escola municipal de ensino fundamental Infante Dom Henrique, no Canindé, na região central de São Paulo Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Caio do Valle

Colaboração para o UOL, em São Paulo

17/01/2017 04h00

Quando alguém entra na recepção da EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Infante Dom Henrique, no Canindé, na região central de São Paulo, se depara com um grande mural colorido na parede: rostos estilizados de pessoas de diferentes etnias e culturas. Acima da pintura, uma inscrição: “Por uma escola pública inclusiva”.

Esse conjunto, criado pela artista chilena Verónica Ytier, representa um bom resumo das políticas que vêm sendo implantadas no colégio, focadas no combate ao racismo e à xenofobia e na inclusão de minorias. Há pouco tempo, a instituição recebeu o convite da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para participar de um programa mundial de escolas associadas.

“Geralmente, a iniciativa é das escolas, que se candidatam e aguardam até três anos para serem reconhecidas e fazerem parte da rede, quando são certificadas. No entanto, o nosso processo foi mais rápido [iniciado em 2015]. Os documentos já foram enviados ao escritório da Unesco em Paris e estamos aguardando a certificação”, diz o diretor da unidade, Cláudio Marques da Silva Neto.

A rede de colégios ligados à Unesco partilha um repertório comum de atividades anuais voltadas aos direitos humanos. Segundo a entidade, a intenção é promover a “ampliação da consciência à cidadania” e a “cultura de paz”. No caso da EMEF Infante Dom Henrique, o que chamou a atenção do órgão internacional foram os projetos iniciados em 2012 para promover o respeito e a maior integração de alunos estrangeiros --eles somam cerca de um quinto dos 530 estudantes matriculados.

Dom infante 2 - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Cláudio Marques da Silva Neto, diretor da escola municipal
Imagem: Reinaldo Canato/UOL
'Sucursal da ONU'

O principal projeto desenvolvido é o Escola Apropriada, que, a cada 15 dias, reúne todos os estudantes imigrantes ou descendentes de estrangeiros para debater temas importantes relacionados à sua situação. “Cada aluno pode chamar um colega brasileiro para participar dos encontros, caso queira”, diz o professor Cesar Luís Sampaio, coordenador das atividades. As reuniões acontecem na sala de leituras, onde também são apresentados vídeos e músicas.

“A pauta sempre é aberta, pois desejamos que estas surjam por parte dos alunos e suas necessidades. Sempre temos parcerias que ajudam nas reuniões caso não apareça nenhuma necessidade naquele momento pelo grupo”, explica Sampaio.

Na EMEF Infante Dom Henrique, há alunos de países como Bolívia, Angola, Peru, Colômbia, Estados Unidos e Síria. “Somos uma sucursal da ONU”, costuma brincar Silva, o diretor. A comunicação visual interna é feita em quatro idiomas: português, espanhol, árabe e inglês. Antes das iniciativas adotadas pela atual gestão, eram rotineiros os casos de bullying sofridos por estudantes, principalmente bolivianos, que chegavam a ficar apartados dos demais nas salas de aula e nos intervalos. Os trabalhos rendem bons frutos, e essa separação já não é mais praxe.

Dom Infante 1 - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Escola tem mural com discussões sobre o racismo
Imagem: Reinaldo Canato/UOL
Racismo estrutural

O professor Sampaio, que ministra suas aulas a todas as turmas do primeiro ao nono ano na sala de informática, ilustra o sucesso das atividades com um episódio recente, em uma classe do quinto ano. "Um aluno descendente de boliviano chamou de 'macaco' um colega de sala que veio de Angola. Ambos participam do projeto Escola Apropriada. A sala toda repreendeu a atitude do aluno e ainda exigiu do professor uma atitude punitiva."

Segundo Sampaio, o professor conversou com a sala, que decidiu, coletivamente, qual deveria ser a forma de resolver a questão. "Foi decidido que o aluno ofensor pedisse desculpas duas vezes ao aluno angolano e que também fizesse o mesmo para toda a classe, pois todos ficaram indignados e se sentiram ofendidos pela atitude." Em seguida, os professores tiveram uma conversa em particular com o agressor, que, diz Sampaio, "se mostrou muito arrependido e envergonhado".

Situações racistas ainda são relativamente comuns e o docente as atribui ao próprio cotidiano das crianças fora da escola, em relações familiares (nas quais um preconceito pode ser passado de pai para filho) e no contato com a mídia, onde negros ainda são muito pouco representados. Com o intuito de estimular a reflexão dos alunos, Sampaio deu início a aulas para discutir os variados tipos de cabelo que as pessoas têm, buscando explicar que todos são bonitos e especiais.

Expedição à Bolívia

Situada próxima do Bom Retiro e a poucas quadras da praça Kantuta, a EMEF recebe muitos bolivianos e descendentes de imigrantes da Bolívia (tanto o bairro quanto a praça, onde ocorrem feiras gastronômicas, estão entre os espaços mais frequentados pela comunidade boliviana em São Paulo). São alunos que, em vários casos, têm os pais trabalhando em condições precárias e que ainda estão pouco integrados à cultura brasileira.

Com o intuito de estimular a aproximação entre os colegas, o colégio conseguiu realizar uma expedição pedagógica à Bolívia, em outubro de 2014. Na viagem, foram selecionados quatro estudantes estrangeiros, que deveriam indicar, cada um, um aluno brasileiro para acompanhá-los.

“Esse foi um dos nossos maiores feitos”, diz Silva, diretor da escola. “Para nós, é importante que os imigrantes conheçam a nossa cultura, mas é igualmente importante que nós conheçamos a cultura deles.” Na visita de cinco dias a La Paz e a locais como o sítio arqueológico de Tiwanaku e o lago Titicaca, o grupo pôde conhecer mais sobre a história e os costumes bolivianos. O projeto foi custeado pela prefeitura.

Carolina de Jesus - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
A escritora Carolina Maria de Jesus, autora de 'Quarto de Despejo'
Imagem: Acervo UH/Folhapress
Sem fronteiras

Agora, a EMEF luta para alterar seu nome para Escritora Carolina Maria de Jesus, figura pública que morou numa favela que se situava perto de onde está a escola. A mudança, aprovada em referendo pela comunidade escolar, está articulada com as diretrizes de tornar a instituição mais representativa de seus alunos e do entorno.

Outro projeto que tem sido bem-sucedido no colégio é o Escola sem Fronteiras, uma espécie de cursinho que desde 2011 prepara, gratuitamente, alunos do ensino fundamental para o ingresso em escolas técnicas. A ideia surgiu do fato de a EMEF ser vizinha do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, mas de quase ninguém da comunidade escolar conhecer esta instituição.

“Consideramos um projeto exitoso, pois em 2011 não havia nenhum aluno egresso da escola. A partir de 2012, ainda no início do projeto, os alunos começaram a ingressar lá e em outras ETECs [escolas técnicas estaduais]. Para se ter uma ideia, atualmente há alunos que são aprovados em até três escolas técnicas e escolhem o curso que querem cursar”, explica Silva. 

O administrador de empresas Sidnei Palmieri, 48, explica por que decidiu matricular seu filho na EMEF Infante Dom Henrique, apesar de morar longe dali. “A escola é única e, quando nos deparamos com esses profissionais, mesmo com todas as dificuldades, nos enche de orgulho. Também nos dá um repúdio quando percebemos que o poder público não dá o retorno que a escola merece.”