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Recebendo salário a conta-gotas, professor da Uerj faz dívida de R$ 20 mil

Alexandre Bello, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj, não consegue pagar contas com parcelamentos de salário - Bruna Prado/UOL
Alexandre Bello, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj, não consegue pagar contas com parcelamentos de salário Imagem: Bruna Prado/UOL

Marcela Lemos

Colaboração para o UOL, no Rio

31/03/2017 04h00

Alexandre Bello tem 25 anos dedicados à Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). No currículo: doutorado, pós-doutorado e dois anos como pesquisador visitante da Universidade Harvard, em Boston, nos EUA.

No banco, dois empréstimos que somam mais de R$ 20 mil. O motivo da dívida é o parcelamento dos salários de servidores do Estado do Rio. 

O professor, que trabalha sob regime de dedicação exclusiva na Uerj, conta que, em mais de duas décadas na instituição, nunca vivenciou uma crise tão severa. 

Ele diz que, desde que os salários começaram a ser parcelados, em novembro, precisou recorrer a empréstimos para honrar compromissos financeiros e garantir o tratamento de saúde do filho de 8 anos, que nasceu com suspeita de Síndrome Alcoólica Fetal e traços de autismo. 

Gabriel Vitor requer cuidados em período integral. Além de gastos com medicamentos, a criança conta com uma pedagoga que o acompanha na escola.

"Meu filho toma remédios controlados. Um único medicamento já chegou a custar R$ 300 cada caixa. A pedagoga que o acompanha no colégio representa um custo de R$ 1.500, fora despesa com plano de saúde, que não tem como deixar de pagar", enumera ele. 

"É uma situação difícil. Em um mês você recebe o salário em cinco vezes, depois em seis vezes ou até em nove parcelas. Tive de fazer dois empréstimos mais volumosos e dividir em parcelas mais suaves para conseguir pagar a dívida aos poucos. Vou demorar quatro anos para quitar tudo. É uma situação indescritível. É lamentável. E a gente não para de trabalhar! Leva trabalho para casa, participa em bancas de mestrado e doutorado em instituições como a Fiocruz, por exemplo, e por aí vai."

Bello  - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Alexandre Bello trabalha em laboratório parcialmente sem luz
Imagem: Bruna Prado/UOL

Bello é um dos 175 mil servidores do Rio que tiveram o salário parcelado devido à crise financeira do governo do Estado. Os professores da instituição receberam recentemente o último depósito referente ao pagamento de janeiro. 

Os profissionais acumulam uma defasagem de dois salários, pois não foram pagos nem o 13º nem o salário de fevereiro --o calendário para efetivar esses pagamentos ainda não foi concluído. O vencimento relativo ao mês de março também não será pago hoje, quando chega ao fim o mês.

"Nunca pensei que isso pudesse acontecer, a Uerj era um sonho"

Quem também precisou se adaptar a uma nova realidade foi a professora de parasitologia Silvia Gonçalves. Ela tem dois filhos. Um deles também é autista e requer cuidados especiais. 

No entanto, a docente, que trabalha há 15 anos na universidade, conta que a família não conseguiu poupar o adolescente da crise financeira que atinge os profissionais. 

"José Pedro tem 13 anos. Ele tinha um mediador que é quem fazia a integração dele com outras crianças na escola, mas acabamos dispensando o profissional. A gente tinha planejado fazer essa mudança aos poucos. A intenção era que o mediador acompanhasse ele cada vez menos no colégio, mas não conseguimos, tivemos que suspender totalmente. Está sendo um momento difícil para o José. É uma adaptação."

A professora conta ainda que precisou suspender os quatro planos de saúde da família, tirar os filhos do transporte escolar e do curso de inglês. "A gente vai cortando tudo. Nunca pensei que isso fosse acontecer. A Uerj era um sonho. Você leva muitos anos para montar uma equipe, receber financiamento para projetos de pesquisa e, quando consegue, tem seus salários parcelados, atrasados, verbas de estudo que não são liberadas. É desanimador", afirma.

"Não tenho dinheiro para vir trabalhar, mas estou aqui, fazendo meu trabalho"

Nadia Moreira - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
A técnica Nádia Moreira foi para a Uerj em junho de 2016, mas diz só recebido quatro salários de forma integral até hoje
Imagem: Bruna Prado/UOL

Já a técnica universitária Nádia Moreira, 36, conta que deixou a Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais, onde trabalhava como pesquisadora, após ela e o marido passarem em dois concursos no Rio. Ela foi para a Uerj e ele aguarda para tomar posse na Polícia Civil. 

Moreira conta que, desde que começou a trabalhar na Uerj, em junho de 2016, só recebeu quatro salários de forma integral. "Meu marido ainda não tomou posse. Estou sozinha com todas as contas da casa, morando de aluguel numa cidade que tem um custo de vida muito alto, bem superior ao de Ouro Preto. Não tenho dinheiro para vir trabalhar e, mesmo assim, estou aqui fazendo meu trabalho."

Estamos endividados, temos parcela de empréstimos para pagar, fora todas as outras contas

Nádia Moreira, que sofre com cortes da Uerj

Justiça impede governo de cortar 30% dos salários

Na semana passada, o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), afirmou que poderia cortar 30% do salário de professores e funcionários da Uerj para forçar a retomada das aulas na universidade, que estão suspensas há três meses.

"O que a gente quer é que retorne a aula. Todo mundo está recebendo com atraso, tem professores de pós-graduação, mestrado e doutorado dando aulas. O que não dá é para ficar cinco meses parado. O Estado está fazendo um esforço imenso e os alunos sem aula", afirmou o governador.

No entanto, a Justiça do Rio concedeu mandado de segurança que impediu qualquer corte salarial de servidores da universidade. O pedido foi feito pela própria Uerj, que alegou que aulas não foram retomadas neste ano devido aos problemas orçamentários. De acordo com Justiça, a instituição informou que a paralisação das atividades não é voluntária nem foi motivada por reivindicações salariais de seus servidores. A decisão foi do desembargador Maurício Caldas Lopes, da 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio.

Questionada sobre a possibilidade de recorrer da decisão, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) disse que ainda não foi notificada.

"Quanto é 30% de nada?"

Enquanto isso, professores e demais profissionais criticam a declaração do governador: "Como se coloca milhares de alunos em um prédio sem estrutura? Normalmente, a gente já tirava dinheiro do bolso para comprar material para dar aula, agora sem dinheiro faremos como? Isso só pode ser uma piada. A intenção é causar confusão", afirmou a professora Silvia Gonçalves.

Nádia Moreira questionou os valores a serem descontados: "Quanto é 30% de nada? Não sei fazer esta conta. Não paga salário e ainda quer fazer cortes?".

Volta às aulas

Na segunda-feira (3), a reitoria e o Fórum de Diretores das Unidades Acadêmicas da Uerj vão avaliar se a universidade apresenta condições mínimas que possibilitem o retorno das atividades. 

Para voltar de vez com as aulas, a Uerj informou que aguarda a regularização dos pagamentos das bolsas permanência dos estudantes cotista, que são quase 40% dos alunos da graduação e também da apresentação à universidade de calendário de pagamento de salários.

Os alunos de graduação estão sem atividades desde dezembro, quando foi encerrado o período de aulas equivalente ao primeiro semestre de 2016.

A universidade reiterou que não se encontra fechada. Atividades de pesquisa e extensão estão funcionando, assim como o Hospital Universitário Pedro Ernesto, que continua atendendo a população.

Do orçamento de R$ 1,1 bilhão foram repassados, no ano passado, R$ 767,4 milhões. Ainda não foram feitos repasses em 2017.