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Pioneira em cota racial, Uerj calculará total de alunos negros pela 1ª vez

Uerj foi a primeira instituição de ensino superior do país a adotar cotas, inclusive, étnico-raciais. - Tânia Rêgo/Agência Brasil
Uerj foi a primeira instituição de ensino superior do país a adotar cotas, inclusive, étnico-raciais. Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Matheus de Moura

Colaboração para o UOL, do Rio de Janeiro

02/07/2022 04h00

Oitava melhor universidade do país, a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) foi a primeira instituição de ensino superior brasileira a adotar cotas sociais e étnico-raciais — com reserva de vagas à população negra (pretos e pardos) e indígena —, feito que inspirou o modelo para a Lei de Cotas e tem sua "paternidade" disputada por políticos e acadêmicos. Apesar do pioneirismo, a universidade disponibilizará pela primeira vez em 20 anos os dados que permitam traçar um perfil completo dos alunos cotistas e dos estudantes negros que ingressaram na instituição.

Apesar de a Uerj ter sido palco de um marco histórico no Brasil há duas décadas, pesquisadores ouvidos pelo UOL afirmam que não é possível ter um panorama completo da presença de alunos negros na instituição. Isso porque a universidade não publicizava dados que permitam mensurar quantos alunos negros não são cotistas.

Já a respeito dos cotistas, a Uerj só exibia dados gerais, informando, por exemplo, o número de ingressantes. Segundo a instituição, eles eram pouco mais de 3 mil em 2003, primeiro vestibular com cotas, e passaram a ser mais de 7,5 mil em 2020. O perfil desta parcela do corpo discente ainda não era possível de ser analisado pela ausência de dados, como renda, cor e gênero de todas as possibilidades de reserva de dados. As informações mais completas chegaram ao GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), da Uerj, no mês de junho deste ano.

"Esses dados são centrais para avaliar a política de cotas. Eles permitem saber em que medida as cotas estão sendo cumpridas e os percursos acadêmicos dos cotistas", explica Luiz Augusto Campos, coordenador do GEMAA. "No limite, esses dados nos permitirão acompanhar as taxas de conclusão dos cursos e a inserção de cotistas no mercado de trabalho", complementa, acrescentando que não ainda há previsão para divulgação do cálculo.

Ao UOL, Luiz Augusto explica que a Uerj e a maioria das universidades não forneciam esses dados completos devido a uma interpretação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que define informação racial e étnica como dado pessoal sensível. "Muitas universidades têm interpretado erroneamente a LGPD e não liberado os dados de raça. Embora eles sejam considerados como 'dados sensíveis' pela lei, há uma exceção clara nela sobre liberação com fins de pesquisa", explica.

Essa ausência de dados tem prejudicado a proposição de melhorias nas políticas estudantis em diversas universidades, de acordo com a doutoranda em Sociologia pela estadual e pesquisadora do GEMAA Poema Portela. "Os estudos acadêmicos são mobilizados para pensar desde projetos de leis até o desenho das políticas. Então os trabalhos em torno de um certo tema vão ser feitos a partir dos dados que temos. O principal impacto nesse sentido é a redução do número de estudos que vão estar disponíveis pelos institutos de pesquisa e com dados desatualizados", detalha.

Os 10 anos da Lei de Cotas no Brasil

Projeto robusto

A Uerj passou a reservar 50% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas a partir da aprovação da lei nº 3.524 em 2000, na Alerj (Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro). Um ano depois, começou a destinar 40% das vagas para candidatos autodeclarados negros, a partir da aprovação da lei nº 3.708.

Em 2008, a lei nº 5.346 foi aprovada e unificou as duas em uma nova legislação estadual. O texto prevê 20% das vagas para estudantes negros, quilombolas e indígenas, 20% para oriundos de escola pública e 5% para pessoas com deficiência e filhos de agentes de segurança pública mortos ou incapacitados em serviço, além de também desenvolver o instrumento legal que exige bolsas de permanência da universidade.

As ações afirmativas na universidade serviram de modelo para a lei nacional nº 12.711 sancionada em 2012. Chamada de Lei de Cotas, a proposta prevê a reserva de 50% das vagas das universidades e institutos federais de ensino superior a estudantes de escolas públicas. Dentro dessa reserva, também estipula regras para destinar vagas a alunos de baixa renda, negros, indígenas e com deficiência.

Para Seimour Souza, cientista político e coordenador do núcleo do Rio de Janeiro da Uneafro Brasil (União de Núcleos de Educação Popular para negros e a classe trabalhadora), a política afirmativa tem representado uma mudança importante no país, uma vez que transcende os quatro anos de estudos do aluno da universidade. "Você cria uma nova gramática do que é ser negro no Brasil, pois a partir daquele estudante você permite que todas as gerações seguintes daquela família possam ascender ao ensino superior", diz.

Para Seimour Souza, além da experiência na Uerj ter servido de exemplo para a criação da lei nacional, ela desenvolveu um "robusto programa de permanência e bolsas para alunos cotistas", o que ainda é deficiente nas universidades brasileiras.

Na Uerj os auxílios vão desde o benefício de bolsa permanência (auxílio financeiro) de R$ 500 para alunos de todos os níveis de graduação e pós-graduação, até auxílios de transporte, alimentação e creche. Ao todo, em 2020, segundo o último relatório de atividades da Pró-Reitoria de Políticas Assistenciais Estudantis, foram destinados cerca de R$ 39 milhões para bolsas de permanência de estudantes. Diferente do que é protocolar na maioria das universidades, na Uerj os alunos também podem acumular benefícios de diferentes origens.

Cotistas negros da Uerj

Autoria em disputa

Sancionada pelo então governador Anthony Garotinho, a lei nº 3.524 causou polêmica na época por não tocar nas questões raciais. Ainda assim, encontrou menos resistência do que a lei que viria a ser aprovada no ano seguinte destinando parte das vagas a estudantes negros e indígenas.

A proposta surgiu do gabinete do então deputado estadual José Amorim (ex-PPB, atual PP). Segundo a antropóloga e pesquisadora Michele Peria, Amorim redigiu o projeto de lei ao lado do jornalista Continentino Porto. Ele disse a Peria que leu sobre cotas em uma notinha de jornal e pediu a Amorim que o enviasse ao Senado para pesquisar sobre o tema.

Há oito mandatos na Alerj, o deputado estadual Carlos Minc (PSB), no entanto, reivindica para si o mérito das duas leis aprovadas pela Assembleia entre 2000 e 2001. De acordo com o parlamentar, ambas derivam de suas tentativas frustradas de aprovar legislações similares nos anos 1990. Para ele, Amorim e Garotinho aprovaram as leis separadamente para não precisar creditá-lo, já que ele era um político da oposição, membro da esquerda carioca. Na época, Minc era do PT. O UOL entrou em contato com Garotinho, mas o ex-governador não respondeu sobre o assunto até a publicação da reportagem.

Em sua dissertação de mestrado defendida em 2004 na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Peria corrobora a versão de Minc. Segundo ela, membros do gabinete, em conjunto com ativistas do movimento negro, políticos, organizações estudantis, de professores e ONGs, auxiliaram na elaboração de projetos de leis nesse sentido.

Uma das colaborações de destaque é a do militante negro e pesquisador Carlos Alberto Medeiros, que trabalhou com Abdias do Nascimento (1914-2011) na Sedepron-RJ (Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Negras do Rio de Janeiro). Ele teria redigido boa parte dos PLs.

O movimento negro no Brasil considera, porém, que as primeiras propostas de lei relacionadas às cotas em território nacional, embora não tenham sido aprovadas, foram encabeçadas por Abdias, fundador do renomado TEN (Teatro Experimental do Negro), enquanto ele era deputado federal entre 1983 e 1987.

Intragável para alguns, justa para outros

Um dos argumentos de pessoas contrárias às cotas é que os beneficiados ocupariam o lugar de alunos mais capacitados. Ao menos três processos judiciais à época da implementação da política na Uerj partiam desta ideia. Todos foram movidos por estudantes que prestaram o vestibular, não conseguiram ingressar na universidade e alegaram terem sido penalizados pela reserva de vagas.

Nessa tríade de casos, os juízes do Tribunal de Justiça fluminense decidiram, cada um à sua maneira, que as pessoas supostamente lesadas sequer tinham nota para entrar na Uerj. Uma das jovens queixosas ficou na 73ª posição para o curso de Medicina, que oferecia 46 vagas na época. A aluna que pleiteava uma das 35 vagas de Ciências Econômicas ficou em 173ª. O estudante que concorria a um dos 38 postos em Direito terminou em 188º lugar.

Entre os que eram contrários às cotas, incluindo acadêmicos, existia ainda o argumento de que a única forma de acabar com a desigualdade nas universidades seria investindo na educação básica de qualidade. Para outros, alunos em situação de vulnerabilidade baixariam as médias das turmas e acabariam por erodir a reputação das universidades públicas brasileiras.

"É interessante que as reações contrárias tivessem surgido tanto à direita quanto à esquerda do espectro político. E isso se deu antes mesmo de elas começarem a ser implementadas", relembra Carlos Alberto Medeiros ao UOL.

Por outro lado, integrantes do movimento negro, especialistas e acadêmicos apresentaram vários argumentos favoráveis às cotas, entre eles, de que elas provocariam um processo de reparação histórica à população negra que, segundo eles, foi prejudicada no acesso aos direitos sociais devido ao período da escravidão no Brasil. As cotas permitiriam que essa parcela da população tivesse as mesmas oportunidades das pessoas não-negras no acesso à educação.