Topo

Pioneira da física, professora adiou aposentadoria para ver cotistas no ITA

Sonia Guimaraes, professora do ITA, durante premiacão do Trofeu Raca Negra em 2015, realizada na Sala São Paulo - Greg Salibian/Folhapress
Sonia Guimaraes, professora do ITA, durante premiacão do Trofeu Raca Negra em 2015, realizada na Sala São Paulo Imagem: Greg Salibian/Folhapress

Letícia Marques e Nataly Simões

Colaboração para o UOL, de São Paulo

15/07/2022 04h00

Àquela altura da vida, Sonia Guimarães já colecionava um histórico de "primeiras vezes": a ter diploma de ensino superior na família, como professora negra do prestigioso ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e como mulher negra a receber o título de doutora em física no Brasil.

Em 2018 e aos 61 anos, já apta a se aposentar, ela não via a hora de testemunhar a primeira vez de outras pessoas. Sem conter a alegria, adiou o descanso para dar aula aos primeiros alunos cotistas da mais concorrida instituição de ensino do país e que relutou a adotar a política de ações afirmativas. Em entrevista ao UOL, ela comemora ("a mudança está acontecendo"), mas diz que o pioneirismo é tardio.

Essa história de eu ser a primeira física, 101 anos depois da abolição, é uma vergonha [para o país]. Se vivêssemos numa democracia racial, como dizem, teria sido outra e bem antes de mim"

Forças Armadas x cotas

A empolgação de Sonia começou antes de os cotistas serem aprovados. Ela pleiteou uma vaga na comissão que avalia a autodeclaração racial dos cotistas. Fez a formação obrigatória oferecida pelo ITA, mas, ao fim da seleção, foi escalada só como suplente.

Em 2018, no primeiro vestibular com cotas, o ITA reservou 22 das 110 vagas para as seis graduações em engenharia (aeroespacial, aeronáutica, civil-aeronáutica, computação, eletrônica e mecânica). O percentual de reserva é inferior ao oferecido dentro da política de cotas por outras instituições públicas e destinado apenas a negros (pretos e pardos).

As universidades e institutos federais de ensino superior vinculados ao Ministério da Educação seguem a Lei de Cotas (nº 12.711), de 2012, que prevê reserva de 50% das vagas para estudantes de escola pública. A política também beneficia negros, indígenas e pessoas com deficiência. Como está subordinado ao Ministério da Defesa, o ITA entendeu que não seria obrigado a adotar as cotas nesses moldes.

O instituto só passou a avaliar implementar alguma iniciativa do tipo a partir da lei nº 12.990, de 2014, que reserva 20% das vagas de concursos públicos da União a negros. Ainda assim, o Ministério Público Federal teve de entrar na Justiça para as Forças Armadas cumprirem a legislação.

Sonia - Bruno Poletti - Bruno Poletti
Sonia Guimarães, professora de física do ITA, durante evento de lançamento de um livro em 2014
Imagem: Bruno Poletti

Ampliando a visão

O assunto ainda é tabu internamente. "Não posso falar de cotas [no ITA]", afirma Sonia. Ela e os demais professores foram proibidos pela instituição de comentar o tema na imprensa. Enviada por email, a orientação chegou após dezenas de candidatos autodeclarados negros serem reprovados pela banca examinadora do ITA e terem de entrar com ações judiciais para conseguir o direito. Ela, porém, fala com gosto sobre cotistas.

"Alunos negros estão vindo até mim quando entram no instituto. Vêm para conhecer, não a professora, mas a Sonia Guimarães que eles viram, provavelmente, em palestras, pois já sabem da minha história. Isso nunca aconteceu antes das cotas", conta.

É o caso de Bruna de Assis, estudante de engenharia aeroespacial que ingressou na instituição em 2022. "Já queria entrar no ITA quando a conheci, mas a possibilidade de ter aulas com ela aumentou mais meu desejo."

Os 10 anos da Lei de Cotas no Brasil

Para Sonia, as cotas raciais foram adotadas tardiamente no Brasil. "Deveria ter começado no primeiro ano da abolição da escravatura. As cotas só chegaram 124 anos depois disso. Em vez de jogar a população negra na rua como se fosse indigente, tinham que ter dado condições de vida, como moradia, comida, saúde e escola. E ainda precisamos de mais. A reserva tinha que chegar a 56% [das vagas], que é a quantidade de negros no país. As cotas não estão baixando o nível das universidades, mas ampliando a visão".

Apesar de ter concorrido como cotista, Bruna entrou no ITA por ampla concorrência e é entusiasta da política.

É evidente que, quanto mais heterogêneo for o grupo de pessoas, mais variadas serão as percepções sobre um fato. Abre-se espaço para a produção de conhecimento menos restrito a um viés e alguns questionamentos passam a ser relevantes"
Bruna de Assis, estudante de engenharia aeroespacial do ITA

Pioneira por acaso

No início de sua trajetória acadêmica, Sonia Guimarães também contrariou algumas expectativas. Apesar de ela ter notas altas especialmente em matemática, a mãe sonhava ver a filha virar advogada. Sonia tinha outros planos.

Filha de pai tapeceiro e mãe comerciante, a estudante de escola pública em Brotas, interior de São Paulo, trabalhava para pagar cursinho pré-vestibular para ser engenheira civil. Prestou Mapofei, o vestibular da década de 1970 para as grandes faculdades de engenharia de São Paulo, mas foi orientada por um professor a procurar cursos menos concorridos.

Em 1976, foi aprovada para estudar física na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Por lá, diz, "havia 4 ou 5 negros e eu era a única mulher". Por algum tempo, até cultivou o desejo antigo, mas as aulas sobre materiais sólidos ganharam seu coração.

Emendou a graduação com um mestrado em física aplicada na USP (Universidade de São Paulo) e, em 1984, recebeu uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para se especializar em química e tecnologia dos materiais no Consiglio Nazionale Delle Ricerche, na Itália. O doutorado em materiais eletrônicos, em 1989, foi concluído na University Of Manchester Institute Of Science And Technology, da Inglaterra. Sua tese de doutorado investiga a difusão aprimorada entre os elementos químicos boro e silício.

Sonia quebrava barreiras sem saber. Só descobriu que havia sido a primeira mulher negra brasileira doutora em física em 2012. "Foi por acaso quando o site Black Women of Brazil fez uma matéria. Fiquei sabendo por uma revista americana", conta. Nem CNPq ou Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) a comunicaram a respeito, diz.

Cotistas negros da Uerj

A entrada no ITA como professora ocorreu em 1993, uma época em que o instituto não admitia alunas mulheres. A restrição só caiu em 1999. "Normalmente só entram 3 ou 4. Mas, ano passado, entraram 17 meninas e, neste ano, 10. É uma alegria imensa", comenta.

Uma das calouras é Bruna. "É, no mínimo, uma fonte de inspiração saber que a Sonia está aqui desde quando não podíamos nos inscrever no vestibular", afirma.

Apesar do prestígio que conquistou, Sonia ainda sente certa resistência à sua presença no ITA. Ter sido a primeira mulher negra doutora em física do Brasil foi um feito menosprezado por colegas do ITA, diz. "Eles me responderam: 'não é porque você descobriu alguma coisa ou fez algo fantástico, é só porque você é negra, não vale de nada'", lembra. "Eu consegui! É um fato importante. Apesar de o ITA não considerar nenhum prêmio que recebi, estou muito orgulhosa de mim".

A professora faz referência à dezena de prêmios e homenagens que vem acumulando desde 2000, dentre os quais o Troféu Raça Negra, concedido pela Faculdade Zumbi dos Palmares, o Troféu do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, pela Prefeitura de São Paulo, e o Troféu Guerreira da Educação Ruy Mesquita, pelo jornal "O Estado de São Paulo".

Neste momento, ela tenta uma promoção profissional para se tornar professora titular. "Se eles disserem não, já tenho até uma advogada preparada. Terão que justificar muito bem", diz Sonia. Além do título de doutora, requisito para o cargo, ela conta a seu favor o registro de uma patente sobre a técnica de produção de sensores de radiação infravermelha.

A falta de diversidade com que Sonia se deparou não é restrita ao ITA. Dados do CNPq coletados entre 2013 e 2017 mostram que, entre 149.407 pesquisadores bolsistas da área de exatas e engenharia, 8,9% eram mulheres negras. Ou seja, pouco mais de 13.000.

sonia2 - Greg Salibian/Folhapress - Greg Salibian/Folhapress
Sonia Guimaraes no evento de premiacao Trofeu Raca Negra de 2013, realizado no Memorial da America Latina
Imagem: Greg Salibian/Folhapress

Aposentadoria?

Se em 2018 Sonia resolveu adiar a aposentadoria, a chegada da pandemia de covid-19 fez a professora ter certeza de que não queria descansar tão cedo.

Além de professora, Sonia é membro da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), presidente da Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão da SBF (Sociedade Brasileira de Física), conselheira fundadora da Afrobras, ONG mantenedora da Universidade Zumbi dos Palmares, e membro do Conselho Municipal Para a Promoção de Igualdade Racial de São José dos Campos (SP).

O trabalho remoto forçado fez a física imergir no universo digital. No ano passado, chegou a fazer uma live por dia e ainda montou um canal no YouTube com a ajuda de amigos, o "Avanço Brasil Negro". Mesmo sem palestras e encontros presenciais, queria continuar debatendo um assunto que julga da mais alta importância: as cotas raciais.

"Agora só me aposento quando descobrir o que quero fazer. Ainda não sei o que quero ser quando crescer. Se bem que, com 70 anos, eles me expulsam do ITA", brinca, fazendo referência à idade da aposentadoria compulsória do instituto.