De choro escondido a mãe de santo: curso vira 'abrigo' de cotistas na UFRJ
Antes de ser professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Giovana Xavier, 43 anos, aprendeu com a mãe, também docente e a primeira mulher da família a entrar na faculdade, que sala de aula é lugar de promover mudanças radicais. Acostumada com uma universidade frequentada majoritariamente por alunos brancos, ela levou um susto quando abriu a porta e se deparou com cerca de 70 estudantes negros como ela à sua espera.
A primeira reação dela foi ir ao banheiro e chorar. Mas não podia ficar lá muito tempo. Eles estavam lá para assistir à aula da disciplina "Intelectuais Negras: escritas de si, saberes transgressores e práticas educativas de mulheres negras", que a professora ministra desde 2015 e criada com duplo propósito: enfatizar o protagonismo de mulheres pretas e pardas na criação de conhecimento e mostrar como cotistas, em sua maioria negros, podem encontrar pessoas semelhantes na sala de aula.
Lembro de olhar para cima sem entender o que estava acontecendo. Ali foi o momento em que vi não só uma ruptura, mas uma transformação [na universidade]."
Giovana Xavier, professora de história na UFRJ
Para espalhar a mensagem
O contraste daquele momento e sua época de graduanda era nítido. Quando começou a cursar história na UFRJ, em 1999, era uma das poucas alunas negras na sala. Só dali a 13 anos seria aprovada a Lei de Cotas (nº 12.711), que reserva a estudantes de escolas públicas 50% das vagas de instituições públicas de ensino superior. Parte delas é destinada a alunos de baixa renda, negros, indígenas e com deficiência.
Em 2013, já doutora em história social, Giovana tornou-se professora adjunta da UFRJ. No ano seguinte, as mudanças começaram a ser vistas, com a chegada dos cotistas. "Vejo que a gente conseguiu avançar, mas atacou a rebordosa. São avanços que trazem alegria, esperança e possibilidade, mas, ao mesmo tempo, mostram nossa condição de precariedade", comenta Giovana.
Os 10 anos da Lei de Cotas no Brasil
Na época, Giovana fundou o grupo de pesquisa Intelectuais Negras junto de outras docentes, a pedagoga Azoilda Loretto da Trindade (1957-2015) e as historiadoras Celia Cristo, Claudielle Pavão, Janete Santos Ribeiro e Marta Muniz Bento. Elas discutem a produção de conhecimento de mulheres, seja oral e escrita, para mostrar como é possível um diálogo entre academia, movimentos sociais e sociedade.
O passo seguinte foi demarcar esse debate no currículo. Foi aí que surgiu a ideia para a disciplina, que tem se tornado um lugar de acolhimento negro. Aprovada no Consuni (Conselho Universitário), colegiado que delibera a criação de novas disciplinas, a aula foi incluída na grade eletiva do curso de Pedagogia, permitindo que qualquer estudante pudesse fazê-la. Até alunos de outras universidades e países já participaram dela.
Outra característica da disciplina é que ela é itinerante. Já foi oferecida nas faculdades de Educação, localizada no campus da Praia Vermelha, e de Letras, na Ilha do Fundão (Ilha do Governador). Neste semestre, a casa do curso é o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, no Centro do Rio. Para Giovana, isso permite que a mensagem circule.
Com o pé na porta
A disciplina concentra a produção de intelectuais negras, não necessariamente aquelas formadas pela academia. Giovana leva para as salas de aula um ideal inspirado pela escritora norte-americana bell hooks (1952-2022), para quem intelectual é aquele que incomoda, que é ativo nas ideias assumidamente coletivas e capazes de minar as estruturas coloniais. Por isso, a bibliografia do curso mescla intelectuais históricas, como a antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994), e contemporâneas, como a filósofa Djamila Ribeiro, mas abre espaço para professoras de ensino fundamental, sacerdotisas de candomblé, assistentes sociais, artistas, ativistas, mães, tias e avós.
Outras das inspirações do curso são as inquietações de Giovana. "Como posso fazer valer a tradição intelectual negra, que passa pela experiência de ser negro, dentro de um espaço que está o tempo todo ensinando que quem você é deve ser afastado do conhecimento que você produz?", indaga a professora. "É claro que cada área tem a sua formação, mas não podemos perder de vista a dimensão humanista'', conta.
O penúltimo livro de Giovana, de 2019, possui um título que resume o curso e a trajetória da professora: "Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história" (Editora Malê) reúne colunas dela no Nexo Jornal e textos no blog Conversa de Historiadoras.
Foi neste blog que Giovana publicou em 2016 um texto questionando a falta de autores negros na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) e comparando o evento a um "arraiá da branquitude". O texto viralizou, e o público reagiu. Três anos depois, dos cinco autores mais vendidos da Flip, quatro eram negros e um era indígena.
Se são a linha central da disciplina de Giovana, as pessoas negras, maioria na população (56%, segundo o IBGE), são cerca de 20% do corpo docente da UFRJ - 323 professores num universo de 1.560 entrevistados. Para tentar reverter o cenário, 58 docentes negros se reuniram e criaram um coletivo. No primeiro ato, propôs um manifesto para implementar políticas antirracistas na universidade, como uma comissão para criar e acompanhar ações desse tipo e fazer um mapeamento étnico-racial da comunidade acadêmica.
"Na sala de aula, aprendemos juntos a ser sujeitos políticos negros, entendendo o quê o canudo da UFRJ representa em termos de compromisso com a comunidade negra."
Cotistas negros da Uerj
Ensinando a transgredir
Giovana aprendeu em casa a valorizar histórias em primeira pessoa. Ainda mais porque a família apostou todas as fichas na educação. Desde pequena, ela viu a mãe, Sonia Xavier, se esforçando para dar aulas de qualidade em uma escola pública da Vila Vintém, favela da zona oeste do Rio. A filha tentou à sua maneira trilhar os mesmos passos. Na graduação, conciliava o estudo com aulas a jovens que cumpriam medidas socioeducativas.
Tive todo o treinamento acadêmico de excelência, mas acho que a minha base de pensamento acadêmico vem das 'Xavier da Conceição', as mulheres da minha família que se debruçaram nessa perspectiva do movimento, do sonho, da criatividade, em meio a condições de muita precariedade"
Giovana Xavier
Em uma tarefa da disciplina Intelectuais Negras, ela pediu que os estudantes exemplificassem a produção de conhecimento em suas próprias famílias. A estudante de história Mariana Batista desenhou o resultado do jogo do bicho. "Aprendi matemática com o meu avô, que era um jogador nato de bicho", contou a aluna.
Giovana ficou paralisada. Para ela, esse é o verdadeiro sentido do aprender. "A academia precisa ter espaço para teorizar essas experiências. Esse é trabalho que faço: teorizar as experiências negras dentro de possibilidades científicas que não existem, em uma zona em que se valoriza quem oferece essas ferramentas e a epistemologia [produção de conhecimento] negra", explica. Cotista, Mariana enxerga que as aulas são um marco em sua vida.
Existia uma Mariana recém-chegada na faculdade. Agora, depois de passar pelo curso, há outra. É uma disciplina que me incomoda, mas é um incômodo bom, porque me faz pensar em outras alternativas, numa capacidade que nem eu sabia que tinha. Tinha a impressão de que o que me levou até a universidade não importava. Na academia, importa o que você vai se tornar, o intelectual que você vai ser. A atividade da Giovana faz o movimento contrário: me fez voltar ao que me trouxe aqui para entender o que quero ser"
Mariana Batista, estudante de história da UFRJ
Futuras gerações
No ano que marca a revisão da política de cotas, Giovana celebra a política, mas sinaliza que faltam auxílios capazes de garantir a permanência dos alunos e segurança estudantil. Na ausência destes benefícios, é a família que entra em jogo.
"Tenho estudantes que saem de casa às 4h. São meninas que moram dentro do Jardim Gramacho, em Antares, no Cesarão [favelas da zona oeste do Rio]. Ainda está escuro, e quem vai com elas ao ponto de ônibus são as mães. Assumimos um risco institucional sem considerar isso um risco. Sou verdadeiramente agradecida a essa mãe. Muitas vezes, é alguém que queria estar na universidade, mas não conseguiu. Agora, está no ponto de ônibus porque a filha precisa conquistar um diploma e dar continuidade ao seu legado. As condições são desiguais", reflete a professora.
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