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Doutorandos brasileiros nos EUA viram 'cobaias' para aumentar renda

Letícia Sé

Colaboração para o UOL, em Santos

30/12/2022 04h00

Pesquisadores brasileiros nos Estados Unidos estão sobrevivendo graças a doações de alimentos de uma instituição de combate à fome e fazendo bicos como "cobaias" em experimentos científicos. Segundo eles, as bolsas que recebem de instituições como Capes (ligada ao Ministério da Educação), CNPq (do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) e Fapesp (da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do governo do estado de SP) são insuficientes para viver no país.

O UOL ouviu relatos de cinco brasileiros, que estão fazendo doutorado sanduíche nos EUA com apoio das instituições brasileiras. Todos os nomes são fictícios para preservar as fontes, que temem represálias.

Quanto os pesquisadores recebem?

O valor recebido mensalmente por eles, em média, é de US$ 1.700 mensais, sendo uma bolsa de US$ 1.300 e um adicional de US$ 400 para cidades de alto custo.

Mas pesquisadoras brasileiras ouvidas pela reportagem, que vivem em San Francisco, na Califórnia, o valor do aluguel de um quarto em uma casa compartilhada já custa US$ 1.300.

Além disso, o temor de cortes nas bolsas tem aumentado nas últimas semanas.

Pesquisadores não podem trabalhar. Exercer atividades remuneradas é proibido pelos editais de fomento científico, mas os doutorandos não veem outra saída, já que o valor recebido é insuficiente.

Pesquisadores viram "cobaias"

Participar de experimentos remunerados de farmacêuticas, de empresas de tecnologia ou até das próprias universidades se tornou parte do cotidiano dos bolsistas brasileiros nos EUA.

Quais experimentos podem garantir renda? Os experimentos mais comuns de que participam são os de doação de plasma sanguíneo. Há também outros, como a coleta de DNA para empresas que fazem mapeamento de ancestralidade e tendência a doenças, testes de hipóxia - experimento em que se mede a oxigenação dos tecidos e do sangue após um estímulo por gás nas vias aéreas -, e também testes de smartwatches sobre o controle de batimentos cardíacos, em que o voluntário recebe substâncias injetáveis que aumentam e diminuem seus batimentos ao longo de uma sessão de quatro horas.

Quanto as pessoas recebem? Por doação de plasma, os participantes recebem em média US$ 100. Na coleta de DNA, o valor oferecido é de US$ 25, além de uma análise de ancestralidade. Pelo teste de hipóxia, os voluntários recebem US$ 200. Já o valor oferecido pelo teste cardíaco é de US$ 550.

Os pagamentos se dão de formas variadas, como um cartão pré-pago ou um cheque que pode demorar de quatro a seis semanas para chegar na casa do participante.

Quais os efeitos colaterais desses experimentos? "Claro que faz mal. Mas o que que eu vou fazer? Como vou sobreviver?", responde Andreia quando perguntada sobre se a frequência na participação desses experimentos pode prejudicar a saúde. Ela relatou enjoos, sudorese e mal-estar durante um teste de dispositivos medidores de dilatação de pupila, pelo qual receberá US$ 400.

"Foi paulada. Os anestésicos me fizeram mal. Eu suava muito, mesmo fazendo 6°C. Senti muito enjoo, mas apesar de tentar vomitar, não conseguia, porque estava em jejum de 12 horas", relata.

Vitória, doutoranda bolsista da Fapesp, diz que a doação de plasma sanguíneo pode ser feito até duas vezes por semana. "Na minha última doação, fiquei com um hematoma enorme, meu braço inchou bastante. Quero dar um tempo para me recuperar", descreve.

"Recebi iogurtes próximos ao vencimento"

Pesquisadores brasileiros nos EUA têm se alimentado graças às doações de comida do Food Bank, uma instituição de combate à fome e à insegurança alimentar que funciona como uma parceria do governo americano com instituições privadas e a sociedade civil.

Levei minha folha de pagamento da Capes e foi considerado que estou abaixo da linha da pobreza nos EUA
Andreia, pesquisadora Capes.

Os pesquisadores brasileiros vão aos centros do Food Bank mais próximos de suas moradias uma vez por semana, quando retiram uma sacola que contém frutas, legumes e uma porção de proteína animal, como ovos ou frango.

Michele, que é doutoranda bolsista do CNPq, e Ana, da Capes, relatam já terem recebido alimentos vencidos ou muito próximos da data de vencimento, como batatas chips e laticínios. "Uma vez, recebi uma cartela de dez iogurtes que venceriam no dia seguinte", diz Ana.

Boca livre é divulgada entre alunos. Há grupos de WhatsApp em que os acadêmicos brasileiros avisam uns aos outros sobre eventos com alimentação gratuita nas faculdades.

"Faço uma refeição por dia, e de resto, tento conseguir alimentação grátis nos eventos da universidade", diz Gabriel, doutorando brasileiro que recebe bolsa Capes e vive na região de Nova York.

Estresse com dinheiro, alimentação e experimentos atrapalham a pesquisa

Para continuar com experimentos, pesquisadores se preocupam com a alimentação. Antes da coleta de plasma começar, é preciso se submeter a um exame de sangue que controle as taxas de ferro e proteínas. Então os doutorandos brasileiros nos EUA gastam o pouco dinheiro que sobra mensalmente em alimentos como carne vermelha, beterraba e lentilha.

Eu só compro carne enlatada, não consigo comprar carne fresca, é muito caro para mim.
Michele, doutoranda bolsista do CNPq

  • "Por vezes, eu não passei no teste [de ferro e proteínas]. É uma viagem de uma hora para chegar no laboratório da empresa farmacêutica. Gasto US$ 10 com a passagem. Chorei quando fui negada", diz Andreia.
  • "Tenho que justificar as faltas para meu supervisor, dizer a ele que estou saindo das atividades para participar de experimentos. Meu professor não entende por que eu tenho que fazer isso, e eu tenho que explicar que minha bolsa não é suficiente para viver. É humilhante, constrangedor", afirma Michele.
  • "Temos que gastar tempo doando plasma, gastar tempo pensando na comida, e não conseguimos nos concentrar direito na nossa pesquisa. Tenho um artigo para escrever faz um mês e não consigo me concentrar pensando em como fazer dinheiro", diz Andreia.

Bolsas estão ameaçadas?

Uma queixa comum dos bolsistas brasileiros é a falta de transparência dos órgãos. Os acadêmicos entrevistados - que recebem bolsas da Capes, do CNPq e da Fapesp - contam que desde a notícia de que a Capes não teria verba para pagar 200 mil bolsas no Brasil, divulgada no último dia 6, eles buscaram seus órgãos de fomento pelos canais de comunicação oficial, em busca de mais informações sobre o próximo pagamento, e não obtiveram respostas conclusivas sobre se seriam afetados pelos cortes.

  • O CNPq, por exemplo, paga os bolsistas de forma trimestral. "Mas nunca sei ao certo quando cai meu pagamento", diz Michele.
  • A mesma reclamação recai sobre a Capes. "Estou só com US$ 60 na carteira", diz Andreia.
  • Um comprovante de renda mensal no valor de US$ 2.300 é exigido pelas universidades americanas. Os acadêmicos brasileiros, depois de aprovados nos editais, burlam essa declaração, pegando valores emprestados de orientadores, amigos e familiares.

Veja as respostas dos órgãos de fomento à pesquisa

A Capes e o CNPq expressaram que não haverá corte de bolsas aos brasileiros no exterior e negaram atrasos no pagamento dos acadêmicos. Procurada por e-mail e telefone, a Fapesp não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta matéria.

Confira as respostas, na íntegra, da Capes e do CNPq

Capes: Em relação ao pagamento de bolsas no exterior, a CAPES esclarece que tem atualmente diversos programas vigentes com previsão de concessão de bolsas para o exterior e o recurso para o pagamento desses benefícios para os anos seguintes está previsto no Projeto de Lei Orçamentária. Assim, a previsão da CAPES é de continuação no fluxo de pagamentos das bolsas no exterior conforme planejamento prévio.

Sobre pagamentos, a CAPES informa que estabelece um cronograma que visa o repasse de benefícios de forma antecipada. Os referentes a dezembro foram pagos. Vale lembrar que o processo de pagamento depende de uma série de etapas, dentre as quais o envio de documentação por parte dos bolsistas ou alteração de instituição ou país de estudo, que podem resultar em possíveis atrasos. Esses casos são monitorados pela equipe da CAPES para que seja possível efetuar o pagamento tão logo a pendência seja solucionada.

Quanto ao valor das mensalidades, a CAPES está sensível às demandas dos bolsistas e tem trabalhado em estudos e cenários para identificar a melhor situação frente à necessidade de adequação orçamentária. Para evitar situações de vulnerabilidade de bolsistas no exterior, a CAPES concede além da mensalidade, outros benefícios que visam contribuir com as despesas necessárias para a execução da bolsa: mensalidade, auxílio deslocamento, auxílio instalação, auxílio seguro saúde, adicional localidade (em cidades consideradas de alto custo) e adicional dependente.

As bolsas e auxílios no exterior concedidos pela CAPES são, em regra, pagas em moeda estrangeira, dirimindo efeitos da variação cambial perante ao Real e não sofrem as mesmas perdas das concedidas no Brasil por não estarem sujeitas aos índices de inflação nacionais.

CNPq: Não houve e nem está previsto corte de bolsas de pesquisa. Os pagamentos das bolsas do CNPq estão em dia, sem identificação de atrasos. O CNPq conta, atualmente, com 302 bolsistas no exterior, em 28 países.

O valor recebido está abaixo da linha da pobreza americana e abaixo da renda mínima para estudantes das universidades americanas. O CNPq e o MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações], em um esforço conjunto, conseguiram realocar recursos na PLOA 2023 para que seja possível, no próximo ano, reajustar em 30% os valores de todas as modalidades de bolsas de pesquisa, incluindo as bolsas no exterior, e minimizar essa situação.