Topo

'Fiz Enem no mesmo lugar onde fui preso por tráfico e passei em medicina'

Wallace William terminou os estudos dentro de uma penitenciária em 2001 - Arquivo Pessoal
Wallace William terminou os estudos dentro de uma penitenciária em 2001 Imagem: Arquivo Pessoal

Camila Corsini

Do UOL, em São Paulo

27/03/2023 04h00

A vida de Wallace William da Costa, de 44 anos, virou ao avesso algumas vezes nos últimos 25 anos. Em 1998, ele foi preso por tráfico de drogas.

Terminou os estudos dentro da penitenciária em Juiz de Fora (MG), saiu da cadeia e, anos depois, passou a sonhar com uma aprovação em medicina.

Hoje, está matriculado na UFNT (Universidade Federal do Norte do Tocantins). Ao UOL, Wallace contou sua história.

'Resolvi mudar'

"Com 18 anos, me envolvi com tráfico de drogas e fui preso. Estava naquela fase de não saber se completava ou não o segundo grau (atual ensino médio).

Ao chegar à penitenciária, me deparei com a privação da liberdade. Sem poder sair, sem poder fazer o que eu gostava. Aquilo me deu um estalo: eu tinha de fazer alguma coisa.

Ou eu continuava nessa vida ou eu resolvia mudar — e foi o que eu fiz. Não queria mais o crime, não. Queria acertar o que devia para a Justiça, pelo erro que cometi, mas não queria mais aquilo para mim

Eu já estava condenado por um crime hediondo e teria de cumprir quatro anos em regime fechado. Nessa época, surgiu a oportunidade de estudar lá dentro e vi a chance de completar o ensino que eu não tinha.

Para incentivar os detentos, quando você estudava, tinha uma redução da pena — se não me engano, a cada três dias estudando eu tinha um a menos lá dentro.

Mas não foi isso que me motivou. Eu vi, ali, uma nova forma de enxergar a vida. E o estudar era assistindo aulas na televisão; na época, fitas de vídeo cassete do Telecurso 2000. A cada seis meses tinha uma prova para fazer. Passei e, em 2001, concluí o meu segundo grau.

Depois, tentei entrar na faculdade. Prestei o vestibular lá dentro e fiquei por poucos pontos de entrar em medicina na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Só que, mesmo que eu tivesse passado, não poderia sair por estar cumprindo pena por um crime hediondo. O juiz teria de liberar, demora... A chance era pequena.

Quando eu percebi que, estudando por conta própria, lá dentro, eu conseguiria... Isso foi me abrindo caminhos. Em 2002, eu saí — tive redução de uns dois meses na pena, por estudar — e tinha de me sustentar.

'Perguntaram se tive problema com a Justiça'

Minha irmã, que é técnica de enfermagem, me incentivou e fui fazer esse curso também. Comecei a trabalhar em um hospital psiquiátrico de Juiz de Fora.

Só que, recém-formado, você ganha um salário mais baixo. Resolvi tentar melhores hospitais por lá mesmo.

Em um deles, passei em todas as fases do processo seletivo — fiz até o exame admissional. Em dado momento, me perguntaram se eu já tinha tido algum problema com a Justiça.

Respondi que sim, mas que já tinha pagado e estava tudo acertado em relação a isso. Eles falaram que me ligariam e essa ligação não aconteceu até hoje

Um tempo depois, abriram alguns concursos no Rio de Janeiro. Um deles, do Ministério da Saúde, para uma vaga temporária. Depois, abriu para efetivo e passei também. Nesse tempo, no Rio, trabalhei até na Fiocruz.

'Decidi fazer Enem de novo'

Em 2014, comecei a ter muitas dores na coluna. Operei, me afastaram do trabalho e acabei me aposentando. Voltei para Juiz de Fora para criar minhas filhas. Sou pai da Mariana, de 12 anos; da Maria Antonia, de 9; da Maria Luiza, de 8; e da Maria Clara, de 7.

Na pandemia, em 2020, fiquei com muito tempo ocioso e resolvi estudar de novo. Foi quando fiz o Enem e passei para engenharia mecatrônica, no Instituto Federal de Juiz de Fora, e em odontologia na universidade federal da cidade.

Aquilo me despertou que eu poderia prestar medicina de novo. Decidi fazer o Enem novamente. Fiz a prova no mesmo presídio em que dei entrada no sistema carcerário [o local foi transformado em uma escola e foi ponto de aplicação da prova].

No dia que fui fazer a prova, me veio um estalo: por que Deus está me trazendo a este lugar de novo? E, com aquela prova, consegui passar em medicina na UFNT

Deixei minha família em Minas Gerais, fui para Araguaína (TO) e hoje estou no segundo período. Ainda não sei se vou tentar transferência para Juiz de Fora ou se vou trazer todo mundo para cá.

Wallace William está no segundo período de medicina na UFNT - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Wallace William está no segundo período de medicina na UFNT
Imagem: Arquivo Pessoal

A saudade é grande, mas é por uma causa boa. É pelo futuro, principalmente, das minhas filhas.

'Fui acolhido'

Medicina foi meu sonho desde a época do presídio. Acabou ficando um pouco adormecido por causa da família, do trabalho... Mas quando vi a oportunidade, resolvi tentar de novo.

Não me cobrava muito. Nunca fui de ter uma rotina fixa de muitas horas de estudo.

Não deixei de fazer minhas coisas, levar as crianças para a escola, brincar com elas, dividir as tarefas de casa com a minha esposa. Às vezes eu lia livros, outras vezes assistia às videoaulas, ouvia podcasts. Estudei por conta

Minha única ajuda foi, ainda na penitenciária, quando pedi para um cursinho me enviar um material. Isso foi muito útil na época. Mas, dessa vez, foi apenas força de vontade e dedicação.

Já a recepção na universidade foi maravilhosa. Nem achava que pudesse ser tão boa. Ninguém ali sabia que eu já tinha sido preso, mas vim de uma classe social mais baixa. Fui muito bem acolhido.

'Quero retribuir'

Achei que pudesse ter um pouco de preconceito por ser negro, pobre e já ter 43 anos (na época da aprovação). Aqui no Norte é diferente: tem bastante gente de idade mais avançada. Na minha sala, tem umas três ou quatro pessoas com mais de 35 anos. Mas a grande maioria [dos colegas] poderiam ser meus filhos.

Com o tempo, fui pegando intimidade com algumas pessoas e acabei abrindo minha vida. Contei aos mais próximos que já tinha sido preso. Eles me incentivaram a abrir essa história

Mesmo sabendo que isso me expõe, eu quero mostrar que há chances de recuperação. Só quero que as pessoas vejam que, quando a gente chega no fundo do poço, existe a possibilidade de sair de lá.

Quando me formar, quero mexer com a parte social, me dedicar pelo menos um dia da semana para retribuir as pessoas. Penso muito em medicina da família e atendimento em UBS, focar na classe média baixa e ter mais contato com o público.