São Lúcifer: o santo católico clandestino que a Igreja renega
Acredite ou não, Lúcifer é mais que só o "coisa-ruim" para os católicos - é também um santo. A relação entre São Lúcifer e o Lúcifer diabo não vai além do nome, mas já é o suficiente para que o culto ao religioso não seja visto com bons olhos.
Quem foi São Lúcifer?
Também chamado de Lúcifer de Cagliari, ele nasceu no início do século 4º, na Itália, e viveu até o dia 20 de maio do ano 370.
Sua juventude é desconhecida pelos historiadores - o que se sabe é que ele se tornou bispo de Cagliari, a capital da ilha italiana da Sardenha. Segundo a Enciclopédia Britannica, a primeira aparição documentada do religioso é como enviado do papa Libério ao Imperador Constâncio 2º, solicitando a convocação de um concílio da igreja.
Ele não é canonizado pelo Vaticano, apesar de ser venerado por católicos da Sardenha, na Itália.
Opositor do arianismo e excomungado
São Lúcifer foi um ferrenho opositor da teoria do arianismo. Essa vertente do cristianismo primitivo não acreditava na consubstancialidade de Deus - ou seja: para eles, Jesus não era análogo a Deus Pai, e sim subordinado a Ele.
No concílio convocado por Lúcifer a mando do papa Libério, o bispo de Cagliari defendeu o arcebispo Atanásio de Alexandria, o maior expoente da luta contra os arianistas. Por essa defesa, ele foi confinado por três dias no Palácio Imperial pelo imperador Constâncio 2º.
Lúcifer foi exilado por essa oposição à política eclesiástica imperial. Nesse período, ela passou pela atual Turquia, pela Palestina e finalmente por Tebaida, no Egito.
Durante o exílio, ele escreveu panfletos inflamados ao imperador, nos quais se proclamava pronto para sofrer o martírio por suas crenças.
Os anos exilados também foram de estudos. Estudioso da língua grega e hebraica, ele escreveu contra o arianismo e a reconciliação com a heresia. Suas obras são escritas na forma de discursos proferidos diretamente a Constâncio e se dirigem ao imperador na segunda pessoa.
Após a morte de Constâncio e a ascensão de Juliano, o Apóstata, Lúcifer e outros bispos expatriados foram autorizados a retornar do exílio em 361 ou 362. No entanto, ele não se reconciliou com os ex-arianos.
Ele fundou os 'Luciferianos' para promover suas visões ortodoxas, uma seita que sobreviveu em remanescentes dispersos até o início do século 5º.
Seus seguidores afirmam que Lúcifer foi excomungado. Essa possibilidade é sugerida nos escritos de Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona.
Santo ou não?
Lúcifer é venerado como santo na Sardenha - há, inclusive, uma igreja dedicada ao religioso na região, na qual está enterrada Maria Josefina de Saboia, esposa de Luís 18.
No entanto, esse status é controverso. O teólogo britânico John Henry Blunt escreve que Lúcifer foi uma figura divergente até mesmo na Sardenha.
A Igreja de Cagliari celebrou a festa de São Lúcifer no dia 20 de maio. Dois arcebispos da Sardenha escreveram a favor e contra a santidade de Lúcifer. A Congregação da Inquisição impôs silêncio a ambas as partes e decretou que a veneração de Lúcifer deveria permanecer como estava. Os bollandistas defendem este decreto da Congregação, alegando que o Lúcifer em questão não é o autor do cisma, mas outro Lúcifer que sofreu o martírio na perseguição dos Vândalos.
John Henry Blunt em "Dicionário de Seitas, Heresias, Partidos Eclesiásticos e Escolas de Pensamento Religioso" (1874)
Em 1639, o arcebispo de Cagliari, monsenhor Ambrogio Machin, escreveu o "Defensio Sanctitatis beati Luciferi", uma obra em defesa da santidade de Lúcifer, mas fortemente contaminada pelo paroquialismo, tanto que foi ignorada pela historiografia posterior.
Posteriormente, o Papa Urbano 8º, pelo decreto de 20 de junho de 1641, ordenou a todos que se abstivessem de tratar em público da questão da santidade de Lúcifer e de condenar ou defender seu culto até nova decisão da Santa Sé, o que ainda não ocorreu.
O nome de Lúcifer também pesa na santidade ou não do religioso. Por mais que o significado seja "portador da luz" em latim e originalmente representasse o planeta Vênus, o nome foi relacionado ao diabo após interpretações controversas de passagens bíblicas, como Isaías 14:12 e Lucas 10.
Sendo assim, normalmente a Igreja evita menções a São Lúcifer, com o objetivo de se esquivar de mal-entendidos e polêmicas.
Há anos, por exemplo, circula um vídeo que alega que um "canto gregoriano" entoado no Vaticano exaltava Lúcifer (o diabo). Na realidade, porém, o cântico Exsultet, que inclui versos como "Flammas eius lucifer matutinus inveniat", traz a palavra no sentido original, como "portador da luz".
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