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Vender plasma, rachar marmita: cientistas brasileiros narram aperto lá fora

Pesquisadores relatam dificuldades; bolsa não tem reajuste desde 2013 Imagem: Getty Images/iStockphoto

Do UOL, em São Paulo

06/02/2024 04h00

Pesquisadores brasileiros do programa de doutorado sanduíche da Capes, órgão ligado ao MEC, dizem recorrer à venda de plasma, racionamento de comida e doações para conseguir se manter no exterior.

O que aconteceu

A bolsa não tem reajuste desde 2013, e cada estudante recebe US$ 1.300 mensais (R$ 6.477). A reportagem conversou com pesquisadoras nos Estados Unidos e Austrália. Elas fazem estudos em áreas estratégicas e instituições de ponta, mas dizem que o auxílio recebido está defasado em relação ao custo das cidades onde vivem.

Nas redes sociais, os cientistas se juntam para trocar experiências e cobrar respostas do governo. O programa da Capes prevê um estágio temporário no exterior para alunos de doutorado, mas, diferentemente de outras bolsas, não teve reajuste em 2023. Por meio de nota, a Capes disse trabalhar para "identificar a melhor situação frente à necessidade de adequação orçamentária".

'Queremos o mínimo'

Reserva não foi suficiente. A pesquisadora da área da saúde Bruna* foi aos EUA com o marido e dois filhos. Ela faz estudos na área de desenvolvimento infantil e levou uma reserva de R$ 80 mil. "Mas foram 60% dos R$ 80 mil em dois meses."

Chegando aqui, a gente tem de pagar o primeiro e o último aluguel, e a taxa de corretagem. Para um apartamento de US$ 3.000 (R$ 14.948), precisei pagar US$ 9.000 (R$ 44,9 mil) só para chegar. E é um apartamento sem nada. Comprei mesa, mas não temos cadeira. Não tenho cama para meus filhos dormirem, é colchão no chão.
Bruna

Bruna está em uma cidade de alto custo, mas valor adicional pago pela Capes não supre o básico, diz ela. A Capes tem uma lista de cidades consideradas caras e, para pesquisadores nessas localidades, são pagos US$ 400 a mais ao mês. Ainda assim, a conta não fecha.

Gastos fixos superam ganhos. Bruna conta ter gastos fixos que passam de US$ 3.400 (R$ 16,9 mil) por mês, considerando aluguel, transporte, conta de luz, lavanderia e internet. Os ganhos totais não chegam a US$ 1.800 (bolsa, adicional de localidade e auxílio de seguro saúde). "Não é suficiente nem para uma pessoa só."

Alternativa foi vender plasma. Bruna não pode exercer nenhuma atividade remunerada por causa do tipo de visto que obteve para viver nos EUA. Ainda assim, decidiu vender o plasma do sangue em uma clínica uma vez por semana —mesmo sabendo que não poderia, com o visto que tem— para tentar complementar a renda (nos EUA, a venda de plasma é permitida). Ela recebeu US$ 100 por semana no primeiro mês, mas descobriu que, com o tempo, o valor caía para US$ 40.

Só não faço mais porque é muito longe. Demoro pelo menos três horas para ir e voltar, mais uma hora lá. Perco de quatro horas e meia a cinco horas do meu dia para fazer a venda de plasma. Depois do primeiro mês, se não vai toda semana, te pagam apenas US$ 40. Se vai duas vezes por semana, ganha US$ 40 e US$ 80.
Bruna

Família já pensou em desistir e voltar ao Brasil, mas a bolsa de Bruna é para um ano. "Se a gente voltar, tem de devolver o dinheiro que recebeu da Capes. Não é uma possibilidade, porque não temos esse dinheiro. Estamos recebendo ajuda da família e pegando comida na igreja."

A gente não está reivindicando melhora da bolsa para viajar ou comprar coisas, mas para comer. É o mínimo para se dedicar à pesquisa. Como consigo me dedicar à pesquisa sabendo que o meu filho está comendo enlatado todos os dias? Ele não tem uma fruta fresca, um iogurte.
Bruna

'Divido a marmita'

Raquel Farias, bolsista da Capes Imagem: Arquivo Pessoal

Estudante na Nasa passa dificuldades. Raquel Farias, de 26 anos, também está nos EUA. Formada em biotecnologia no Brasil, ela mora desde outubro em Montain View, no condado de Santa Clara, pesquisando microalgas na Nasa. Sua pesquisa testa a resistência desses seres em condições semelhantes às encontradas em Marte.

Raquel conversou com outros estudantes antes de ir e sabia que a realidade seria dura. "O relato de basicamente todo mundo era que US$ 1.300 era muito pouco e que os alunos arrumavam formas de ganhar dinheiro por fora. Não cheguei a esse ponto."

Estudante não recebe adicional de localidade, apesar de a cidade em que mora ser considerada uma das principais do Vale do Silício. Na região, apenas bolsistas de São Francisco e Palo Alto recebem US$ 400 adicionais. No entanto, Raquel diz que a realidade na sua cidade é bem semelhante às vizinhas.

[A questão de trabalhar na Nasa] faz com que o valor, a especulação imobiliária e o custo de vida sejam muito elevados. As pessoas que moram aqui trabalham nessas empresas e recebem salários muito bons.
Raquel Farias

Apenas moradia já toma valor da bolsa. Como ela mora em um alojamento pago da universidade, não gasta com deslocamento. Mas são, segundo ela, US$ 1.500 (R$ 7.474) mensais para ficar ali —US$ 200 a mais do que ganha. Para conseguir se manter nos EUA até abril, Raquel recorreu a uma vaquinha on-line, e arrecadou R$ 15 mil.

Pesquisadora diz racionar comida. Para comer, Raquel recorre a marmitas brasileiras preparadas por uma empresa, mas tem de controlar a alimentação.

Como uma marmita por dia, divido em almoço e jantar. Poderia comer tudo de uma vez, porque não são porções grandes, mas divido em duas para ter janta também. Não tenho como bancar essas duas refeições por dia.
Raquel Farias

'Pego doação de comida'

Estudos do solo. Tatiana Campo, de 28 anos, é doutoranda em geologia na UnB (Universidade de Brasília) e viajou a Adelaide, na Austrália, para estudar comparações entre o depósito mineral de Carajás (PA) e os de Olympic Dam.

Tatiana Campo, bolsista da Capes Imagem: Arquivo Pessoal

Tatiana sabia que a bolsa não era alta, mas achava que daria para o básico. "Mas a gente já inicia aqui com uma dívida grande."

A bolsa só dava para pagar o aluguel e comprar alguma coisa para comer. A sorte é que a universidade oferece café da manhã de graça aos estudantes. [Quando cheguei], meu aluguel era 80% da bolsa.
Tatiana Campo

Mudanças no salário mínimo local. Em julho de 2023, o salário mínimo da Austrália passou por reajustes e o poder de compra de Tatiana mudou, porque a bolsa não teve alteração. Ela recebe 1.650 dólares australianos (R$ 5.330) —cerca de metade do mínimo local.

Pego doação de comida uma vez por mês na universidade. E, às vezes, eles dão um voucher para usar no supermercado. Amigos e professores também ajudam. Pelo menos o aluguel está pago e a comida eu consigo arrumar.
Tatiana Campo

Visto permite trabalhar, mas rotina da pesquisa de Tatiana é intensa. A pesquisadora dedica a maior parte do tempo, inclusive finais de semana, à pesquisa —que é o motivo de seu intercâmbio.

Tatiana vai continuar no país. A jovem conseguiu uma bolsa australiana para estender os estudos. "Os professores daqui conseguiram arrumar uma bolsa para mim. Eles valorizam mais o trabalho que eu faço aqui do que a Capes. Com o valor [da bolsa de doutorado sanduíche] eu não conseguiria ficar."

O que diz a Capes

Capes está ciente das demandas. Por meio de nota, a Capes afirmou que está aberta "à discussão com os bolsistas em busca de soluções que possam contribuir para melhorar as condições de vida para os estudos no exterior" e que "tem trabalhado em estudos e cenários para identificar a melhor situação frente à necessidade de adequação orçamentária".

Tanto a Capes como o CNPq [agência de fomento à pesquisa] realizaram um estudo para viabilizar um reajuste para as bolsas no exterior. A defasagem dos valores é reconhecida e os reajustes estão na dependência de previsão orçamentária. Importante destacar que o orçamento aprovado pelo Congresso para a Capes em 2024 é menor que o orçamento de 2023.
Capes, em nota

Lista de cidade de alto custo pode passar por revisão, ainda sem data para acontecer. "No mesmo estudo (...) está uma consideração sobre a revisão das cidades de alto custo e, portanto, sua implementação está na dependência de previsão orçamentária também." A Capes também estuda alteração nos critérios de inclusão de cidades na lista.

Exames de proficiência e visto. "A Capes está, no momento, reformulando a comprovação da proficiência em idiomas estrangeiros, além de ampliar recentemente o número de testes reconhecidos pelos editais", afirmou. Em relação aos custos do visto, a instituição reforçou que a responsabilidade é do bolsista.

Para os próximos editais, a Capes também oferece a possibilidade de que o orientador brasileiro e o orientador estrangeiro atestem conjuntamente que o nível de proficiência do candidato é suficiente para o desempenho de suas atividades no exterior. No entanto, o aceite do atestado dos orientadores também depende das normas da instituição no exterior.
Capes, em nota

Capes oferece auxílio para dependentes, mas não para a modalidade doutorado sanduíche. "A Capes está empenhada em buscar uma superação dessa limitação de tal forma a estender essa cobertura também no PDSE. Essa decisão depende de uma formatação adequada para o programa, tempo de duração da estadia no exterior e, principalmente, de previsão orçamentária."

*O nome completo foi omitido, a pedido da entrevistada, que preferiu não se identificar

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