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O polêmico debate sobre reparações pela escravidão no Brasil

Reprodução/Debret
Imagem: Reprodução/Debret

Fernando Duarte

20/11/2015 16h15Atualizada em 20/11/2015 17h15

"Declara livre todos os escravos vindos de fora do Império e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos."

Promulgada em 7 de novembro de 1831, a Lei Feijó propunha exatamente o que a linha de abertura de seu texto, acima, sugeria: o Brasil finalmente aderia ao combate ao tráfico negreiro, depois de quase três séculos de importação de trabalho forçado.

Infelizmente, o compromisso foi apenas no papel - uma forma de ganhar tempo diante da pressão da Coroa Britânica, que 24 anos antes tinha aberto uma frente de batalha diplomática contra o tráfico. Historiadores estimam que até 1850, quando o Segundo Reinado aprovou a Lei Eusébio de Queiroz, a primeira a surtir impacto relevante sobre a escravidão no Brasil, mais de 500 mil negros haviam trazidos ilegalmente da África para o país. Com a conivência das autoridades.

O possível crime de Estado é um dos pontos norteia as atividades de uma comissão especial da Ordem dos Advogados do Brasil, empossada no início do ano para fazer um levantamento minucioso da escravidão negra no Brasil e discutir abertamente formas de reparação e indenização para descendentes de negros aprisionados.

'Crime de Estado'

"É uma Comissão da Verdade sobre a escravidão negra. Faremos uma investigação nos moldes do grupo que investigou os crimes da ditadura. O Brasil ainda não fez algo do gênero, quando se trata de um dos maiores crimes contra a humanidade já cometidos. Isso se torna ainda mais importante quando uma parcela da população brasileira ainda não compreende a necessidade de ações afirmativas contra o racismo em nossa sociedade, que é um legado óbvio da escravidão", afirma o presidente da comissão, o advogado Humberto Adami.

O assunto não é novo. Na época da abolição brasileira, em 1888, abolicionistas defenderam o pagamento de reparações aos escravos libertados, inclusive apresentando modelos de cálculo. Em 2013, o Senado Federal analisou e derrubou uma proposta de pagamentos individuais, que estabelecia um mínimo de R$ 200 mil para descendentes de escravos.

Globalmente, o tema voltou à tona em outubro, quando a visita à Jamaica do primeiro-ministro britânico, David Cameron, foi ofuscada por um pedido da premiê da ilha caribenha, Portia Simpson Miller, para que o governo do Reino Unido aceitasse discutir tanto indenizações quanto um pedido formal de desculpas pela participação britânica no flagelo da escravidão.

A Jamaica, por sinal, faz parte de uma comissão de nações do Caribe que há dois anos prepara uma ação judicial contra os governos britânico, holandês e francês em busca de reparações pela escravidão em tempos coloniais.

"O caso dessas nações é diferente do que está acontecendo no Brasil, porque o grande crime no país foi o momento em que o Estado permitiu uma clara violação da legislação ao não reprimir o tráfico clandestino, que prosseguiu entre 1831 e 1850. A conivência pode ser traçada de funcionários públicos ao imperador Dom Pedro 2º", afirma o historiador brasileiro Sidney.

"O Estado brasileiro precisa reconhecer ainda mais uma dívida que tem com os descendentes de escravos traficados ilegalmente. É necessário desde um pedido de desculpas a uma intensificação das políticas públicas de ação afirmativa. Ainda mais porque a posição relativa da população negra na sociedade brasileira continua a mesma."

Erros assumidos

Luiz Felipe de Alencastro, um dos historiadores que prestaram depoimento ao STF (Supremo Tribunal Federal) durante o julgamento da constitucionalidade do sistema de cotas universitárias, em 2010, também é favorável à reparação por meio da ação afirmativa, sob o argumento de que a população negra e parda é maioria no Brasil.

"Indenizações e reparações são para minorias. Um exemplo é a questão da demarcação de terras indígenas, por exemplo. Para a população negra, há uma necessidade crucial de políticas afirmativas, como assunto de interesse do espírito democrático brasileiro. Nenhum país no continente americano praticou a escravidão em escala tão larga quanto o Brasil e todos os escravos trazidos depois de 1831 foram traficados ilegalmente. O caso é escandaloso e precisa ser discutido publicamente mais e mais, porque houve um conluio geral do Estado brasileiro, um pacto implícito em favor da violação da lei", afirma Alencastro.

Adami, da OAB, concorda que o caminho da ação afirmativa é mais viável para reparações da escravidão. "No momento em que você começa a falar em dinheiro, a coisa complica, mas não acho que quem defenda o pagamento de indenizações esteja errado. Minha maior preocupação, porém, é com a falta de uma política governamental mais forte de promoção de mais educação sobre o que foi a escravidão. A lei 10.639, que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira, por exemplo não é cumprida como deveria", afirma o advogado.

Defensores da reparação financeira apontam para o exemplo dos pagamentos feitos até hoje pela Alemanha para descendentes dos 6 milhões de judeus mortos no Holocausto - durante seis décadas, a Alemanha pagou o equivalente a US$ 89 bilhões a título de indenizações também pelos bens de judeus confiscados pelo regime nazista.

Mas, além das dificuldades técnicas envolvidas no rastreamento de violações dos direitos humanos ao longo de séculos, os custos de reparações individuais podem se tornar gigantescos. Se a proposta rejeitada pelo Senado tivesse ido adiante, por exemplo, os pagamentos rapidamente atingiriam cifras astronômicas - uma estimativa do economista Mário Lisboa Theodoro falava em R$ 16 quadrilhões, mais de 600 vezes o PIB anual dos Estados Unidos, por exemplo.

"Precisaríamos de uma investigação jurídica muito séria para começar a discutir questões de reparação individual, especialmente para discutir o mérito de ações indenizatórias. Ninguém aqui está negando que a escravidão é uma chaga na história brasileira, mas ao mesmo tempo o Brasil deve ser também elogiado pela forma como evitou, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos, uma guerra civil em torno da abolição", afirma Ibsen Noronha, professor da Universidade de Coimbra, em Portugal, e especialista na história do direito brasileiro.

O discurso da reparação feita por meio de políticas públicas é repetido pelo secretário de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Ronaldo Barros. Ele menciona o fato de o Brasil ser signatário da Declaração de Durban, ao final da Conferência Mundial contra o Racismo da ONU, em 2001, na África do Sul, como evidência de o país não ter fechado os olhos para o passado.

"Somos signatários de uma declaração em que assumimos a responsabilidade do Brasil com a história da escravidão e nosso compromisso com a diminuição de seus efeitos sobre a sociedade brasileira. O Estado assumiu os crimes cometidos. E o governo brasileiro tem feito justamente isso nos últimos 12 anos com a criação de ordenamentos jurídicos que vão das cotas de acesso ao ensino superior a leis como a 10.639. O Brasil é um dos países mais avançados na implantação das recomendações de Durban", diz o secretário.

Barros também argumenta que o famoso pedido de desculpas feito pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos países africanos durante uma visita ao Senegal, em 2005, aprofundou um relacionamento do Brasil com o continente, que já era bem diferente do mantido por países como França e Reino Unido. E que, em sua opinião, evitou que movimentos semelhantes ao da comissão caribenha questionassem mais duramente a responsabilidade do governo brasileiro na escravidão.

"As demandas dos países da Caricom (Comunidade do Caribe) são legítimas e não cabe ao Brasil julgá-las. Também fomos vítimas da escravidão, mas temos uma filosofia diferente de lidar com essa dívida histórica também com os países africanos, em uma parceria sul-sul. Nossa reparação é através do desenvolvimento da cooperação com essas nações".