Enem 2018: As lições de quem faz a prova dentro de um hospital
Quando tinha 4 anos, Isabel Cristina Souza Nascimento teve câncer na retina e precisou substituir o olho esquerdo por uma prótese, além de fazer sessões de quimioterapia. Doze anos depois, a doença reapareceu nos ossos. Enquanto Isabel, hoje com 18 anos, tratava o osteossarcoma - uma espécie de tumor ósseo - na perna esquerda, descobriu nódulos nos pulmões.
Em dois anos, passou por cinco cirurgias. A próxima, no pulmão direito, será agora em novembro, mas ela espera que os médicos consigam adiar para depois do dia 11, quando terá a segunda prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Assim como no ano passado, Isabel fará o Enem no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Ela está entre os 42 candidatos inscritos para a prova deste ano que tiveram permissão de fazer o exame dentro do hospital porque estão sob tratamento médico. O exame será aplicado nos dias 4 e 11 de novembro, dois domingos consecutivos.
"Os médicos estão querendo me operar na semana de intervalo entre uma prova e outra do Enem. Até daria para fazer internada, mas depois de uma cirurgia de pulmão que é muito doída, vai ser difícil", diz.
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Isabel e os outros estudantes inscritos para fazer o Enem nos hospitais têm de respeitar as mesmas regras dos demais candidatos dos pontos regulares de aplicação. Eles serão acompanhados por fiscais do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).
O câncer que Isabel teve na infância a fez perder o olho esquerdo. Desta vez, a doença que acometeu os ossos dificulta sua locomoção, por conta da prótese implantada na perna, exigindo o uso de muletas. O tratamento deixa seu raciocínio mais lento, principalmente para as disciplinas de ciências exatas. Mas ela não parou de estudar, embora tenha pensado em desistir muitas vezes.
A estudante concluiu o ensino médio em uma escola da rede pública de São Paulo no ano passado. Embora goste de falar em público e escreva bem, e as pessoas digam que leva jeito para o Jornalismo, pensa em estudar Medicina.
No ano passado, Isabel conta que teve um desempenho "mediano" no Enem e ficou com 500 pontos, em média. Agora, como já é veterana e conhece o modelo da prova, espera que vá se sair melhor. "A parte de Humanas é mais fácil do que pensava, e estamos treinando a redação."
O fato de ter feito a prova no hospital a deixou fisicamente mais confortável. Ela conseguiu esticar as pernas, apoiando-as em travesseiros, já que não pode ficar parada por muito tempo em uma mesma posição.
"É complicado estudar durante esse tratamento, são muitos percalços na vida do estudante. Mas não costumo problematizar o câncer ou tudo o que ele nos faz passar, é uma doença muito difícil, muitas pessoas são levadas a morte. Mas se tem um lado bom é que você muda, amadurece e passa a ser mais grata", diz.
Apoio da professora
Se depender da pedagoga hospitalar do Itaci, Angelita Moraes Ferreira, nenhum paciente internado que esteja cursando o ensino médio deixará de fazer o Enem. Ela leciona dentro do Itaci há seis anos e é a grande incentivadora para que os alunos façam o exame e continuem estudando durante o tratamento.
Todos os anos ela monta grupos de estudos para o Enem, pega provas anteriores para que eles resolvam e propõe redações. Quando o paciente não está bem disposto, chega a dar aulas nos leitos.
"Angelita é o combustível de todos nós. Estou fazendo uma quimioterapia muito forte, fico debilitada, tenho dificuldade para fazer coisas básicas, mas não vou deixar de fazer o Enem por ela", diz Isabel.
Vinculada à rede estadual de ensino, nestes anos de trabalho no Itaci Angelita acompanhou a luta e a derrota de alunos para o câncer, mas também viu aqueles que se curaram e seguiram a vida fora do hospital.
É o caso de Júlia Pascini Masculi, 18 anos, que fez o Enem do ano passado no hospital Itaci por conta do tratamento de um linfoma e hoje está na faculdade. Júlia cursa Análise de Desenvolvimento de Sistema em uma universidade particular da cidade de Peruíbe, no Litoral de São Paulo, e conseguiu bolsa de 50% pelo Programa Universidade para Todos (Prouni).
Júlia teve o diagnóstico de câncer em março do ano passado. Fez seis semanas de quimioterapia e, durante o processo, por conta da queda da imunidade, teve pneumonia e infecção na pele.
"Sempre no terceiro dia de quimio começava a sentir todos os efeitos colaterais, ficava fraca, mal conseguia andar, a imunidade caía, apareciam feridas na boca e não conseguia nem comer. Ia até o meu limite, mas acabava sendo internada", lembra.
Os estudos, no entanto, ajudavam Júlia se manter entretida. "Eu praticamente ficava deitada e recebia o remédio, e, como gosto de estudar, sempre gostei, era o que me distraía. Lia livros dos médicos, a equipe do hospital é maravilhosa, e a professora Angelita me inspirou a escrever poemas."
Quando Angelita sugeriu que Júlia fizesse o Enem, ela achou que "não adiantaria nada", já que não tinha se preparado como deveria. Mas foi o resultado que garantiu a bolsa que permitiu sua entrada no ensino superior.
De volta à vida normal
Os cabelos de Júlia voltaram a crescer - na época, ela raspou a cabeça logo após as primeiras sessões de quimioterapia porque vê-los caindo a irritava - e recuperou a massa magra do corpo que havia perdido.
Não precisa mais de medicamento, estuda, vai à academia e está procurando um emprego. Ela volta ao Itaci a cada seis meses para fazer o acompanhamento padrão.
Filha única, a estudante perdeu a mãe para o câncer ainda na infância. Depois dessa experiência, aprendeu a ver a vida de forma diferente e ser agradecida "por poder acordar na própria casa, e não mais em uma cama de hospital".
Para os jovens que enfrentam doenças, ela pede que não percam as esperanças. "É preciso manter a alma viva, a única coisa que temos o controle, e a alma é tudo. Se você não está bem por dentro, por fora não vai conseguir lutar para vencer nada, qualquer doença. É preciso ter fé, é só uma fase, e às vezes vem para o bem."
sabel, que ainda não está curada e fará o Enem pela segunda vez no hospital, também incentiva os alunos a não desistirem das provas, independentemente de seus problemas, e fazê-las ao menos como experiência.
"Não dá para achar que estamos estudando pouco porque estamos fazendo um tratamento médico. Tem muito aluno estudando menos que a gente. Se você se esforçou ao longo de sua vida escolar, vai ter um bom resultado. Anime-se, bote a cara, no mínimo vai ser uma grande experiência para se aperfeiçoar da próxima vez. Já o máximo é com você", afirma Isabel.
Para a Angelita, a professora conselheira, é gratificante ver quanto o seu trabalho colabora com a vida dos jovens.
"É muito importante dentro do hospital trazer uma rotina perdida, uma perspectiva de vida. Hoje eles estão doentes. Não são doentes, mas perdem a questão da identidade. Não tem outro profissional dentro do hospital, além do professor, que pode fazer o resgate que a escolarização proporciona."
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