A educação do cidadão na república "concurseira"
O acesso a um cargo público, no Brasil, para quem não é do mundo da política, não tem curral eleitoral, nem é indicação de algum dono do poder, passa pelo (des)caminho dos concursos públicos. Então, prepare-se. Digo, não para o cargo. Não para o trabalho. Não para o exercício da cidadania. Prepare-se para a prova das múltiplas escolhas.
Deseduque-se. Imbecilize-se, por algum tempo. Torne-se o bom cidadão da república concurseira. Afaste-se do mundo. O que acontece nele não importa. Não perca tempo com os problemas e a solução dos problemas do Brasil. Agora, isso é besteira. Debruce-se sobre as leis e os códigos. Decore-os, todos. Artigos, parágrafos, incisos e alíneas. Leia e releia os manuais e sinopses. Esqueça filosofia, sociologia, educação, história. Não servem. Faça a lição de casa que o professor do “cursinho” passou. Quando chegar a hora da prova, não pense muito, atenha-se ao que foi perguntado. Limite-se à resposta. A alternativa correta.
Tenha paciência e foco. Você chega lá. Em quatro anos, talvez menos, estudando oito horas por dia, pode virar... Juiz de direito. Isso! Você, que passou tanto tempo alheio ao mundo real, alquebrado, autoestima lá em baixo, daqui por diante, será o Juiz Hércules, de que fala Ronald Dworkin. Julgará casos de família; o que é melhor para uma criança; reintegração de posse; crimes contra a vida. Decidirá sobre vidas, sem nenhuma experiência de vida.
A lógica concurseira de acesso ao cargo público preocupa. Tem reflexos na prática do serviço público, que virá depois. Dia desses, uma magistrada, ao decidir ação judicial, comparou ensino sem qualidade com um carro sem motor. Sabe muito de processo, possivelmente declama, de cor, artigos da lei. Mas a interpretação superficial da educação, restrita à leitura rasa do código de defesa do consumidor, ao decidir sobre educação, impressiona. Não, “Excelência”! A escola não pode ser comparada com uma montadora de automóveis. O ensino não tem nada a ver com mercadoria, à venda no supermercado. Escola, ensino tem a ver com gente, com ser humano, de verdade. Sem motor.
É, por isso, uma grande burrice. Não beneficia, em nada, a construção do espaço público democrático, no país, onde, aliás, emerge como ponto alto de uma estrutura educacional deturpada, restrita a objetivos estáticos, estaticamente avaliados. O exame semestral. A aprovação no fim do ano. O vestibular. O concurso.
A educação é um processo de crescimento contínuo. Não tem fim. Insistia John Dewey, há quase cem anos, que pensar é resolver problemas com que nos deparamos no dia a dia, utilizando as habilidades, os conhecimentos aprendidos anteriormente. Ao solucionar dificuldades, ao preencher lacunas na experiência, mudamos nós, que aprendemos e crescemos. Muda, também, o mundo diante de nós, que se expande, se adensa. Novos problemas, mais complexos, surgem, então, para serem resolvidos por pessoas mais críticas, mais maduras, com mais competências e recursos intelectuais. Isso é educação.
A aprendizagem, o conhecimento, enfim, têm uma finalidade prática muito mais importante do que resolver questão de múltipla escolha. Eles servem para nos ajudar a solucionar as dificuldades, os conflitos, individuais e sociais, que vivemos em nosso cotidiano.
Para ser o bom cidadão, na república concurseira, o problema é localizado: uma boa classificação na prova. Mesmo se sabendo que os problemas a serem enfrentados, no desempenho do serviço público, não são resolvidos com um “x” de caneta esferográfica azul ou preta, na quadrícula correspondente à resposta certa. As respostas para as mazelas históricas do Brasil não podem ser decoradas, nem extraídas do manual. Não estão resumidas no best seller “Dez lições para passar em concurso”. Demandam cidadãos e profissionais críticos, que pensam.
Mas fique tranquilo. Pelo menos, por enquanto. Isso não cai no concurso público.
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