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Crianças precisam brincar mais e comprar menos, diz especialista

Ana Claudia Arruda Leite, 32, coordenadora de Educação do Instituto Alana - Divulgação/Instituto Alana
Ana Claudia Arruda Leite, 32, coordenadora de Educação do Instituto Alana Imagem: Divulgação/Instituto Alana

Karina Yamamoto

Do UOL, em São Paulo

17/08/2014 08h00

Celular novo, último jogo lançado, roupa de marca, mochila de personagem, tênis de grife -- a lista de desejos das crianças e dos adolescentes tem crescido muito nas últimas décadas. E o consumismo tem se tornado uma questão importante para pais e educadores.

Boa parte da solução está nas mãos dos adultos -- e uma das estratégias está em ouvir os pequenos e oferecer a eles ambientes e materiais para se divertir, sem ter que comprar o meio de diversão.

Outra parte da solução, acredita o Instituto Alana, está nas mãos do poder público -- a resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), aprovada no primeiro semestre, proíbe qualquer publicidade dirigida diretamente às crianças.

Criado em 2002, o Instituto Alana define como sua missão "honrar a criança", apostando em projetos com foco na busca pela garantia de condições para a vivência plena da infância. Entre seus últimos projetos está o documentário "Tarja Branca", sobre a importância do brincar.

O UOL conversou com a pedagoga Ana Claudia Arruda Leite, 32, coordenadora de Educação do Instituto Alana sobre consumo, infância e escola. Abaixo, trechos desta conversa.

UOL Educação - Por que é importante discutir o consumo?

Ana Claudia Arruda Leite - O consumo é intrínseco à vida. Necessitamos consumir para nos manter vivos. O problema está na forma como consumimos, que gera graves impactos ambientais, sociais e éticos, e no fato do consumismo ser uma das ideologias mais marcantes da sociedade contemporânea.

Independentemente da classe social, todos são impactados pelo consumismo -- a identidade, ou seja, quem sou, é em grande medida definida pelo o que possuo. Isso faz com que a infância seja vivenciada de maneira diferente. Desde muito cedo, as brincadeiras, os afetos, as relações sociais e os objetos do dia a dia estão influenciados pelo consumo e principalmente pela publicidade.

Mesmo na escola o uso de uma mochila, por exemplo, acaba às vezes tendo uma diferenciação entre as crianças quem tem uma mochila com personagem e quem tem outra sem. Com a publicidade para além do produto, consumismo valores e status social.

UOL - E que tipo de problemas o consumismo pode causar?

Ana Claudia - Diversos problemas atuais derivam do consumismo, como o aumento da obesidade infantil, da violência, da erotização precoce e da diminuição das brincadeiras criativas.

No caso da alimentação, nem sempre os alimentos que têm personagens na embalagem são os mais saudáveis. Mas a criança, ao ser bombardeada pela publicidade infantil, deseja aquele alimento por causa do personagem e dos valores agregados ao produtos. No Brasil cerca de 39% das crianças são afetadas pela obesidade e sobrepeso infantil.

Um problema sério é que estamos antecipando as experiências das crianças e eliminando aspectos importantes para o seu desenvolvimento. Hoje, apesar de as crianças serem muito valorizadas nas leis, nos discursos e no mercado, a infância está em risco ao estimularmos valores e práticas que vão na contramão das necessidades reais das crianças, como brincar, ter tempo para aprender no seu ritmo, ser respeitada, protegida e cuidada.

UOL - A que risco estamos expondo as crianças?

Ana Claudia - Além da obesidade infantil que comentei, há a sexualidade precoce, principalmente no caso das meninas. Uso de maquiagem, sapato com salto e sutiã com bojo é um exemplo de produtos que induzem à sexualidade precoce. Essas coisas que parecem banais no cotidiano - a gente fala: que bonitinha! -, elas têm um impacto tremendo na infância. Tira o foco das meninas: em vez de brincar, ela está preocupada com a saia curta, não corre por causa do salto...

Outro problema é e a intelectualização precoce e a diminuição das brincadeiras livres. Precisamos perceber que há muita expectativa e cobrança em relação à criança e, como decorrência, preenchemos todo o tempo da criança com aulas diversas (inglês, balé, natação) e acabamos por conseguir exatamente o oposto: estresse infantil, apatia, irritação, cansaço.

UOL - Qual é o papel dos adultos, pais e educadores, nessa história?

Ana Claudia - O papel do adulto é acolher a criança com amorosidade e possibilitar a ela experiências e aprendizados que contribuam para o seu desenvolvimento integral e autonomia. Para o entendimento de si mesma, do outro e do mundo.  Compartilhar a vida, criando vínculos afetivos fortes que deem segurança e confiança para a criança, aspecto fundamental para o exercício da autonomia.

Deixar a criança brincar, deixar a criança ter tempo livre para descobrir, experimentar, criar. O adulto, seja educador, pais, avós, têm que observar muito, sair do fazer, sempre pró-ativo para a observação ativa, para conseguir perceber quando é necessário intervir, falar, propor. 

Assim, em vez de dizer do que [a criança vai] brincar ou dar de presente um brinquedo industrializado, que ao apertar o botão já faz tudo por si mesmo, pode disponibilizar para a crianças objetos não estruturados (tecidos, tocos de madeira, corda, potinhos etc) que a estimulem a usar a imaginação e a vontade para criar a sua própria brincadeira.

UOL - De que maneira a escola pode ajudar no combate ao consumismo?

Ana Claudia - A escola tem o potencial de ser um local de encontro intergeracional, de experiência e aprendizado. Sabemos que um dos aspectos fundamentais na aprendizagem é a diversidade. Quanto mais me relaciono com o diferente, seja do ponto de vista etário, étnico, racial, econômico, social, mais eu aprendo sobre a minha identidade e o outro.

A relação com a alteridade, o me colocar no lugar do outro, nos humaniza. Quanto mais a escola acolher essa diversidade, que é intrínseca à vida, mais sentido terá para as crianças, pais e professores.

Acho que hoje precisamos rever a concepção de ser humano e  de sociedade, pela qual a escola se pauta. Na sociedade contemporânea, cada vez mais valorizamos um ser humano autônomo, criativo, inovador, capaz de trabalhar em equipe e de resolver problemas de forma transdisciplinar. Até o mundo de trabalho mudou, é urgente que a escola mude e faça esse debate.